Indo à fava
Mandaram Alexandrino à fava e, como menino bem-mandado, preparou um farnel com duas fatias de pão saloio, uma tira de presunto fumado às escondidas, uma vasilha com os azeites, dois tomates secos, pedaços de queijo furado e um exemplar da Mensagem pessoana.
Com um cajado na mão direita, o farnel na esquerda, um pífaro ao pescoço e uma mochila enorme às costas, lá foi ele, estrada fora, acompanhado pelo fiel rafeiro sem dono, cumprir o seu destino de rumo incerto, por mais certo que o destino lhe fosse.
Subiu montes, desceu aos vales, bebeu chuva e, com a cabeça apoiada na mochila, dormiu ao relento.
A partir do segundo dia, esvaziado que estava o farnel, tocou pífaro em troca de rodelas de chouriço de fumeiro, toucinho de salmoura, pescoços e patas de galinha, cebola picada e pepinos murchos, cachos de uvas morangueiras, pêssegos descalibrados, dióspiros maduros, medronho fermentado, púcaros de água benzida e ossos para o rafeiro.
Alexandrino passarinhou meio mundo e todos aqueles que o viram passar ficaram a saber que o rafeiro era o seu companheiro de viagem, o pífaro era o seu ganha-pão, o cajado era o seu protector e na mochila carregava um confessionário.
Perante a descrença generalizada, ele abria a mochila, retirava um travesseiro e dizia:
- Não há melhor confessor que este! É todo ouvidos!
- E quem te absolve dos pecados? – perguntavam amiúde.
- Este! – respondia, enquanto erguia bem alto o livro de Pessoa.
E por isso, ainda hoje, continuam a mandá-lo à fava.
EMANUEL LOMELINO
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