Agradecemos à autora BEATRIZ H. RAMOS AMARAL a disponibilidade em responder ao nosso questionário
1 – Como
você vê o papel da mulher na literatura atual?
A mulher
está encontrando, aos poucos, o seu próprio lugar na literatura atual. Um lugar
de inventividade, criação, vibrante, singular, universal. Estamos em um momento
de transformação. Embora a produção literária das mulheres tenha sido potente,
viva, extraordinária, em muitos países e há tantos séculos, obviamente a
publicação e a divulgação encontravam barreiras quase intransponíveis, em razão
da cultura patriarcal que reinou por tanto tempo. Exemplos como Clarice
Lispector, no Brasil, Virgínia Woolf, na Inglaterra, Teolinda Gersão, Ana Hatherly,
Sophia de Melo Breyner, Maria Tereza Horta e outras, em Portugal, ao alcançarem
um patamar de excelência, em suas obras, acabam por influenciar escritoras de
gerações posteriores a seguirem em frente e consolidaram suas carreiras, a seguirem
com tenacidade e autoconfiança, sem jamais esmorecer. A visibilidade da
escritura feminina também recebe, há alguns anos, o imenso contributo de
coletivos femininos que se destinam a ampliar a divulgação da literatura
produzida por mulheres. Merece um aplauso especial a escritora brasileira MARIA
VALERIA REZENDE, e todas as que com ela contribuíram no sentido de dar vida ao
Mulherio das Letras do Brasil. Felicidade e muito sucesso para o Mulherio das
Letras de Portugal, o Mulherio das Letras da Europa ! Parabéns! E cumprimentos
especiais para BETH OLEGÁRIO, NOEMI ALFIERI e ADRIANA MAYRINCK, que já estão
realizando um trabalho excelente em Portugal.
2 – Em que
medida o universo feminino influencia na hora de escrever?
Acredito,
sinceramente, que o grau de influência do universo feminino, na escritura, é
bastante variável, dependendo do modo de vida, do temperamento, da
personalidade, da nacionalidade, da faixa etária, da cultura, da vida familiar
ou profissional e de muitas circunstâncias de vida, enfim, de cada escritora. Algumas tomam o universo feminino como tema,
outras apresentam um nível de subjetividade ou de sensibilidade maior e há outras,
ainda, cujo texto em nada se diferencia de um autor do sexo masculino, estilisticamente
ou em termos de dicção, de voz. Somos uma grande polifonia. Talvez, em comum,
todas tenham a força da paciência, a capacidade de se deixarem interromper,
tantas e tantas vezes, pelas questões domésticas urgentes e retornarem ao ato
de escrever com a mesma disposição e garra, uma razoável dose de resiliência,
força, obstinação. É o que se tem exigido das mulheres artistas, das mulheres
escritoras. São os desafios. E a resposta tem sido dada com êxito.
3 – Em que
corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?
A minha
escrita se divide em gêneros, porque já publiquei romance, quando jovem, tenho
outro em preparação, já publiquei contos, poemas, um livro só de haicais, outro
de teoria e crítica literária, sobre a obra do inventivo e pioneiro poeta
brasileiro EDGARD BRAGA (1897-1985) e um ensaio a respeito da trajetória
estética da cantora Cassia Eller. Posso
dizer que, como a maior parte de meus livros publicados é dedicada à poesia – PEIXE
PAPIRO, POEMA SINE PRAEVIA LEGE, PLANAGEM, PRIMEIRA LUA, ENCADEAMENTOS, ALQUIMIA DIS CIRCULOS, LUAS DE JÚPITER e COSMOVERSOS - posso dizer que,
em poesia, minha escrita é metalinguística, é bastante concisa, com elipses em
alguns momentos, até mesmo com certos elementos de feição minimalista, possui,
certamente, muitos resquícios estéticos do movimento da poesia concreta
brasileira, algumas pitadas de ironia, de non-sense e ênfase na musicalidade,
ou melopeia, se quisermos utilizar a célebre classificação de EZRA POUND. Há
também, na minha poesia, elementos de zen-budismo e da cultura oriental, como,
aliás, foi muito bem observado pela ensaísta e crítica portuguesa DANIELA BRAGA,
em resenha publicada na Revista “Terceira Margem", da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, em 1998. Quanto aos meus textos narrativos, há uma
considerável inserção da linguagem poética, gerando uma espécie de interseção
entre os gêneros. Creio que os pósteros e, s leitores que nos sucederem poderão
melhor atribuir estilos e rótulos ao que eu e minha geração produzimos no
momento. Fala-se muito na atual poesia neo-barroca, mas não creio que a minha
poesia reúna, na maior parte das vezes, todos os seus elementos, embora haja vários
deles em alguns momentos. Em prosa, falo
de temas existenciais, faço crítica social, também utilizo muito a ironia, o
humor, estou sempre a criticar a vida que se leva hoje, o ritmo frenético do cotidiano,
a indiferença, as desigualdades, as futilidades, o consumismo desenfreado, a
insensibilidade. E, para concluir, geralmente minhas construções narrativas são
centradas em conflitos psicológicos das personagens. Certamente, elementos de
realismo e também de realismo mágico podem ser identificados no que escrevo.
4 - Que
importância dá aos movimentos de integração da mulher?
A
importância dos movimentos de integração é enorme e incontestável. Dou-lhes
muito valor, na medida em que contribuem para a valorização da mulher, de seu
trabalho, de sua liberdade, de sua independência econômica e visam conjugar
esforços em todos os setores da sociedade com vistas à concretização da
verdadeira, efetiva e substancial igualdade entre mulheres e homens, que já
existe, formalmente, proclamada nas constituições e na legislação especial da
maior parte dos países democráticos, mas que, lamentavelmente, ainda está muito
longe de existir, na realidade, em substância. Só para dar uma ideia da
importância que eu atribuo a estes movimentos, noticio que atualmente também integro,
na área jurídica, o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Púbico,
coordenado pela extraordinária Promotora de Justiça brasileira Dra. MARIA
GABRIELA PRADO MANSSUR, integro também a REBRA – Rede de Escritoras
Brasileiras, presidido pela sempre atuante ESCRITORA JOYCE CAVALCCANTE e sou
membro da ABMCJ, presidido pela Dra. LAUDELINA INÁCIO (nacional) e Dra. ALICE
BIANCHINI (São Paulo), duas competentíssimas juristas. Todos esses movimentos e
entidades que citei são comprometidos com a igualdade de gêneros e buscam,
cotidianamente realizar, na prática, o que o texto constitucional já
prevê. Igualdade de oportunidades.
Respeito.
5 – O que
acredita ser essencial para divulgar a literatura?
Essencial
para a divulgação da literatura, em primeiro lugar, é a valorização da
educação, para que a arte e a cultura, e todas as expressões estéticas (e a
Literatura é uma delas) façam parte do cotidiano de todas as crianças,
adolescentes e jovens. Essencial,
também, a abertura de espaço na imprensa, tanto na escrita quanto na
áudio-visual. Essencial, ainda, nos dias de hoje, o adequado uso das
ferramentas da internet, que estão à disposição de todos, escritores e
leitores, professores e pesquisadores, entre as quais cito os Portais
Literários, as revistas literárias digitais ou eletrônicas, os Blogs de
escritores e de coletivos e, evidentemente, as várias redes sociais.
6 - Quais os
pontos positivos e negativos do universo da escrita?
Para nós,
que escrevemos desde a infância e amamos a palavra, o verbo, a literatura e
todo o universo da escrita, é bem mais fácil identificar e mencionar os aspectos
positivos, claro, que são a comunicação de nosso pensamento, a expressão, a possibilidade de estabelecer diálogo com
leitores, com outros escritores, o prazer lúdico de inventar, de trabalhar a
linguagem, refinar a dicção, lidando com os grafemas como se fossem notas
musicais numa imensa partitura - que é cada nova obra que escrevemos. E
atuarmos como antenas, captando dados da realidade e retratando-os
esteticamente. Aspectos negativos estão fora do universo da escrita, mas a ele
se conectam e são os seguintes: a desvalorização da cultura, da literatura e da
arte, numa sociedade em que a maior parte dos indivíduos idolatra bens
materiais, dinheiro, status econômico, empobrecendo, assim, lamentavelmente,
sua própria experiência de vida. A vida, quando cercada de arte e humanismo,
tende a ser polifônica, aberta, verdadeiramente rica e livre. Um outro aspecto a lamentar, que,
evidentemente, é reflexo do primeiro, é a atual falta de espaço para a
divulgação da literatura nos grandes veículos da imprensa escrita. Refiro -me
ao mundo, em geral, mas me refiro, especificamente, claro, ao meu país, o
Brasil, em que o espaço para a divulgação da arte e a cultura tem diminuído
consideravelmente. Refiro-me à arte e não a mero entretenimento. As gerações
que estão se formando são impelidas a valorizar bens de consumo e, muitas
vezes, impelidas a dar valor a obras de literatura como se fossem produtos para
consumo imediato. Esta realidade tem sido minimizada, naturalmente, com o
nascimento de muitas e excelentes revistas literárias de cultura a e arte, blogs,
seminários colóquios, novas revistas nas universidades e páginas especiais em
redes sociais. Algumas de minhas obras, particularmente,
publicadas no Brasil, foram apreciadas em revistas de universidades de alto
nível, como o meu livro POEMA SINE PRAEVIA LEGE (que, em 1994, foi finalista do Prêmio JABUTI de Poesia, da Câmara
Brasileira do Livro) foi objeto de interessante resenha do Professor GIANLUIGI
DI ROSA em Revista do Instituto de Letras da Universidade de Nápoles, na
Itália, em 1997; mais recentemente, meu livro PLANAGEM (1998) foi objeto de
ensaio da crítica DANIELA BRAGA, na Revista Terceira Margem, da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, em Portugal; mais recentemente, tive outro de
meus livros foi analisado numa Revista eletrônica alemã – de cultura e arte
(2003). Minha mãe, ELZA A. RAMOS AMARAL, por exemplo, que também desenvolveu
sua carreira literária, teve um de seus trabalhos analisados na conhecida
Revista Caravelle, da Universidade de Toulouse, França (2011).
7 – O que
pretende alcançar enquanto autora?
Pretendo
alcançar o meu próprio âmago, alcançar a sensibilidade e despertar a
sensibilidade e o interesse dos leitores, buscar a transformação da linguagem,
pela invenção, e, em última análise, a transformação da sociedade, para que passe
a valorizar o humanismo, a arte, a sensibilidade, a cultura e a literatura. Como
arte, a literatura é indispensável, no mundo.
Para que se possa compreendê-lo e para que se possa recriá-lo. Escreve-se pela necessidade irrefreável de
expressão. Escrevo porque preciso me expressar. Todos e todas escrevemos por
isso. Porque há uma brasa, um vulcão ou um oceano fluindo por dentro e pedindo
nossa voz. Depois, ao relermos nossa própria palavra, sentimos que ela norteia e
ordena o pensamento, aclara nossas questões existenciais, organiza as nossas
ideias e vislumbres do que é vida. A
escrita é nossa autoconstrução, faz parte de nossa individuação. Escrever é vibrar na polifonia plena da
palavra. É dar voz aos sentidos e ao cérebro.
É construir um universo próprio, onde tudo faz sentido. Escrevo para
fazer sentido. Para ter sentido. E para dar sentido ao mundo.
8 – Cite um
projeto a curto prazo e um a longo prazo.
Bem, a
resposta não é fácil, pois muitos e muitos projetos nascem e pedem passagem. Há
um romance por terminar e um volume de poesia bilíngue, já traduzido, em fase
de revisão. E há um segundo CD de Poesia, meu primeiro foi gravado em 2006 e se
chama “RESSONÂNCIAS” e o gravei com o sitar indiano do grande músico ALBERTO
MARSICANO. Vou reunir esses projetos em minha resposta s como sendo de curto ou
médio prazo. A longo prazo, tenho como
projeto a organização da obra completa de minha mãe, a escritora ELZA A. RAMOS
AMARAL , e também a intenção de escrever uma peça de teatro.
9 - Sugira
uma autora e um livro (contemporâneos).
Vou sugerir
a excepcional escritora contemporânea portuguesa Teolinda Gersão e, entre suas obras,
o extraordinário livro “Os Guarda-Chuvas Cintilantes” (Caderno I, Diário) que foi lançado inicialmente em 1984, tendo
tido segunda edição em 1997 e terceira edição agora em 2014. É uma obra primorosa,
que navega e dança na profundidade das reflexões existenciais com a leveza de viandantes
entrelinhas, na força e na suavidade dos hiatos, nos retratos quase tácteis de
todas as nossas trilhas. Construído com arte, engenho, maturidade e altas
dosagens de inventividade, é um dos meus livros preferidos da autora e é muito
interessante o fato de já ter sido chamado pela crítica de livro “sobre
tudo". Bela e instigante obra da premiadíssimo Teolinda Gersão.
10 - Qual a
pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?
A pergunta
que gostaria que me fizessem é a seguinte: Com qual outra expressão artística
você se relaciona e qual a relação desta com a sua literatura, com o seu
processo de escritura?
E a
resposta seria: Além da literatura, relaciono-me bem de perto com a música.
Talvez por ter estudado música desde a infância, instrumento, violão erudito, e
teoria, harmonia, na adolescência e, depois por ter feito também a Faculdade de
Música, paralelamente à Faculdade de Direito.
Ou simplesmente porque a música em mim pulsa, é algo visceral, orgânico.
Ouço música quando escrevo. Não sempre. Mas na maior parte das vezes. Ouço
música quando leio. Quase sempre. O
ritmo, em tudo o que escrevo, é importantíssimo. Sinto as pausas, os acentos
tônicos, as melodias. Recorto compassos. Refiro-me a instrumentos, orquestras, à
música de câmara, a andamentos musicais, a elementos deste vasto e envolvente
universo, mas jamais o faço propositadamente. É natural e espontâneo em mim.
Também há personagens músicos tanto em minhas narrativas como nós poemas e, inclusive,
no meu romance. Existe, portanto, em meu trabalho, uma espécie de simbiose
entre literatura e música. Em um de Meus livros, especialmente, ENCADEAMENTOS,
que é de 1988, esta relação é mais íntima e melhor explorada. Este livro foi objeto
da tese de Mestrado da Profa. Dra. ANNA LUIZA CAMPANHÃ DE CAMARGO ARRUDA BAUER,
em 1993, na PUC de São Paulo. A música está na raiz do poema. Se pensarmos nos
aedos gregos, por exemplo, restará sempre clara a conexão entre as duas artes.
BEATRIZ H.
RAMOS AMARAL
Escritora,
Mestre em Literatura e Crítica Literária
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