domingo, 3 de março de 2019

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL... BEATRIZ H. RAMOS AMARAL


Agradecemos à autora BEATRIZ H. RAMOS AMARAL a disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 – Como você vê o papel da mulher na literatura atual?

A mulher está encontrando, aos poucos, o seu próprio lugar na literatura atual. Um lugar de inventividade, criação, vibrante, singular, universal. Estamos em um momento de transformação. Embora a produção literária das mulheres tenha sido potente, viva, extraordinária, em muitos países e há tantos séculos, obviamente a publicação e a divulgação encontravam barreiras quase intransponíveis, em razão da cultura patriarcal que reinou por tanto tempo. Exemplos como Clarice Lispector, no Brasil, Virgínia Woolf, na Inglaterra, Teolinda Gersão, Ana Hatherly, Sophia de Melo Breyner, Maria Tereza Horta e outras, em Portugal, ao alcançarem um patamar de excelência, em suas obras, acabam por influenciar escritoras de gerações posteriores a seguirem em frente e consolidaram suas carreiras, a seguirem com tenacidade e autoconfiança, sem jamais esmorecer. A visibilidade da escritura feminina também recebe, há alguns anos, o imenso contributo de coletivos femininos que se destinam a ampliar a divulgação da literatura produzida por mulheres. Merece um aplauso especial a escritora brasileira MARIA VALERIA REZENDE, e todas as que com ela contribuíram no sentido de dar vida ao Mulherio das Letras do Brasil. Felicidade e muito sucesso para o Mulherio das Letras de Portugal, o Mulherio das Letras da Europa ! Parabéns! E cumprimentos especiais para BETH OLEGÁRIO, NOEMI ALFIERI e ADRIANA MAYRINCK, que já estão realizando um trabalho excelente em Portugal.

2 – Em que medida o universo feminino influencia na hora de escrever?

Acredito, sinceramente, que o grau de influência do universo feminino, na escritura, é bastante variável, dependendo do modo de vida, do temperamento, da personalidade, da nacionalidade, da faixa etária, da cultura, da vida familiar ou profissional e de muitas circunstâncias de vida, enfim, de cada escritora.  Algumas tomam o universo feminino como tema, outras apresentam um nível de subjetividade ou de sensibilidade maior e há outras, ainda, cujo texto em nada se diferencia de um autor do sexo masculino, estilisticamente ou em termos de dicção, de voz. Somos uma grande polifonia. Talvez, em comum, todas tenham a força da paciência, a capacidade de se deixarem interromper, tantas e tantas vezes, pelas questões domésticas urgentes e retornarem ao ato de escrever com a mesma disposição e garra, uma razoável dose de resiliência, força, obstinação. É o que se tem exigido das mulheres artistas, das mulheres escritoras. São os desafios. E a resposta tem sido dada com êxito.

3 – Em que corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?

A minha escrita se divide em gêneros, porque já publiquei romance, quando jovem, tenho outro em preparação, já publiquei contos, poemas, um livro só de haicais, outro de teoria e crítica literária, sobre a obra do inventivo e pioneiro poeta brasileiro EDGARD BRAGA (1897-1985) e um ensaio a respeito da trajetória estética da cantora Cassia Eller.  Posso dizer que, como a maior parte de meus livros publicados é dedicada à poesia – PEIXE PAPIRO, POEMA SINE PRAEVIA LEGE, PLANAGEM, PRIMEIRA LUA, ENCADEAMENTOS,  ALQUIMIA DIS CIRCULOS,  LUAS DE JÚPITER e COSMOVERSOS - posso dizer que, em poesia, minha escrita é metalinguística, é bastante concisa, com elipses em alguns momentos, até mesmo com certos elementos de feição minimalista, possui, certamente, muitos resquícios estéticos do movimento da poesia concreta brasileira, algumas pitadas de ironia, de non-sense e ênfase na musicalidade, ou melopeia, se quisermos utilizar a célebre classificação de EZRA POUND. Há também, na minha poesia, elementos de zen-budismo e da cultura oriental, como, aliás, foi muito bem observado pela ensaísta e crítica portuguesa DANIELA BRAGA, em resenha publicada na Revista “Terceira Margem", da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1998. Quanto aos meus textos narrativos, há uma considerável inserção da linguagem poética, gerando uma espécie de interseção entre os gêneros. Creio que os pósteros e, s leitores que nos sucederem poderão melhor atribuir estilos e rótulos ao que eu e minha geração produzimos no momento. Fala-se muito na atual poesia neo-barroca, mas não creio que a minha poesia reúna, na maior parte das vezes, todos os seus elementos, embora haja vários deles em alguns momentos.  Em prosa, falo de temas existenciais, faço crítica social, também utilizo muito a ironia, o humor, estou sempre a criticar a vida que se leva hoje, o ritmo frenético do cotidiano, a indiferença, as desigualdades, as futilidades, o consumismo desenfreado, a insensibilidade. E, para concluir, geralmente minhas construções narrativas são centradas em conflitos psicológicos das personagens. Certamente, elementos de realismo e também de realismo mágico podem ser identificados no que escrevo.

4 - Que importância dá aos movimentos de integração da mulher?

A importância dos movimentos de integração é enorme e incontestável. Dou-lhes muito valor, na medida em que contribuem para a valorização da mulher, de seu trabalho, de sua liberdade, de sua independência econômica e visam conjugar esforços em todos os setores da sociedade com vistas à concretização da verdadeira, efetiva e substancial igualdade entre mulheres e homens, que já existe, formalmente, proclamada nas constituições e na legislação especial da maior parte dos países democráticos, mas que, lamentavelmente, ainda está muito longe de existir, na realidade, em substância. Só para dar uma ideia da importância que eu atribuo a estes movimentos, noticio que atualmente também integro, na área jurídica, o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Púbico, coordenado pela extraordinária Promotora de Justiça brasileira Dra. MARIA GABRIELA PRADO MANSSUR, integro também a REBRA – Rede de Escritoras Brasileiras, presidido pela sempre atuante ESCRITORA JOYCE CAVALCCANTE e sou membro da ABMCJ, presidido pela Dra. LAUDELINA INÁCIO (nacional) e Dra. ALICE BIANCHINI (São Paulo), duas competentíssimas juristas. Todos esses movimentos e entidades que citei são comprometidos com a igualdade de gêneros e buscam, cotidianamente realizar, na prática, o que o texto constitucional já prevê.  Igualdade de oportunidades. Respeito.

5 – O que acredita ser essencial para divulgar a literatura?

Essencial para a divulgação da literatura, em primeiro lugar, é a valorização da educação, para que a arte e a cultura, e todas as expressões estéticas (e a Literatura é uma delas) façam parte do cotidiano de todas as crianças, adolescentes e jovens.  Essencial, também, a abertura de espaço na imprensa, tanto na escrita quanto na áudio-visual. Essencial, ainda, nos dias de hoje, o adequado uso das ferramentas da internet, que estão à disposição de todos, escritores e leitores, professores e pesquisadores, entre as quais cito os Portais Literários, as revistas literárias digitais ou eletrônicas, os Blogs de escritores e de coletivos e, evidentemente, as várias redes sociais.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

Para nós, que escrevemos desde a infância e amamos a palavra, o verbo, a literatura e todo o universo da escrita, é bem mais fácil identificar e mencionar os aspectos positivos, claro, que são a comunicação de nosso pensamento, a expressão,  a possibilidade de estabelecer diálogo com leitores, com outros escritores, o prazer lúdico de inventar, de trabalhar a linguagem, refinar a dicção, lidando com os grafemas como se fossem notas musicais numa imensa partitura - que é cada nova obra que escrevemos. E atuarmos como antenas, captando dados da realidade e retratando-os esteticamente. Aspectos negativos estão fora do universo da escrita, mas a ele se conectam e são os seguintes: a desvalorização da cultura, da literatura e da arte, numa sociedade em que a maior parte dos indivíduos idolatra bens materiais, dinheiro, status econômico, empobrecendo, assim, lamentavelmente, sua própria experiência de vida. A vida, quando cercada de arte e humanismo, tende a ser polifônica, aberta, verdadeiramente rica e livre.  Um outro aspecto a lamentar, que, evidentemente, é reflexo do primeiro, é a atual falta de espaço para a divulgação da literatura nos grandes veículos da imprensa escrita. Refiro -me ao mundo, em geral, mas me refiro, especificamente, claro, ao meu país, o Brasil, em que o espaço para a divulgação da arte e a cultura tem diminuído consideravelmente. Refiro-me à arte e não a mero entretenimento. As gerações que estão se formando são impelidas a valorizar bens de consumo e, muitas vezes, impelidas a dar valor a obras de literatura como se fossem produtos para consumo imediato. Esta realidade tem sido minimizada, naturalmente, com o nascimento de muitas e excelentes revistas literárias de cultura a e arte, blogs, seminários colóquios, novas revistas nas universidades e páginas especiais em redes sociais.  Algumas de minhas obras, particularmente, publicadas no Brasil, foram apreciadas em revistas de universidades de alto nível, como o meu livro POEMA SINE PRAEVIA LEGE (que, em 1994, foi finalista do Prêmio JABUTI de Poesia, da Câmara Brasileira do Livro) foi objeto de interessante resenha do Professor GIANLUIGI DI ROSA em Revista do Instituto de Letras da Universidade de Nápoles, na Itália, em 1997; mais recentemente, meu livro PLANAGEM (1998) foi objeto de ensaio da crítica DANIELA BRAGA, na Revista Terceira Margem, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal; mais recentemente, tive outro de meus livros foi analisado numa Revista eletrônica alemã – de cultura e arte (2003). Minha mãe, ELZA A. RAMOS AMARAL, por exemplo, que também desenvolveu sua carreira literária, teve um de seus trabalhos analisados na conhecida Revista Caravelle, da Universidade de Toulouse, França (2011).

7 – O que pretende alcançar enquanto autora?

Pretendo alcançar o meu próprio âmago, alcançar a sensibilidade e despertar a sensibilidade e o interesse dos leitores, buscar a transformação da linguagem, pela invenção, e, em última análise, a transformação da sociedade, para que passe a valorizar o humanismo, a arte, a sensibilidade, a cultura e a literatura. Como arte, a literatura é indispensável, no mundo.  Para que se possa compreendê-lo e para que se possa recriá-lo.  Escreve-se pela necessidade irrefreável de expressão. Escrevo porque preciso me expressar. Todos e todas escrevemos por isso. Porque há uma brasa, um vulcão ou um oceano fluindo por dentro e pedindo nossa voz. Depois, ao relermos nossa própria palavra, sentimos que ela norteia e ordena o pensamento, aclara nossas questões existenciais, organiza as nossas ideias e vislumbres do que é vida.  A escrita é nossa autoconstrução, faz parte de nossa individuação.  Escrever é vibrar na polifonia plena da palavra. É dar voz aos sentidos e ao cérebro.  É construir um universo próprio, onde tudo faz sentido. Escrevo para fazer sentido. Para ter sentido. E para dar sentido ao mundo.

8 – Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

Bem, a resposta não é fácil, pois muitos e muitos projetos nascem e pedem passagem. Há um romance por terminar e um volume de poesia bilíngue, já traduzido, em fase de revisão. E há um segundo CD de Poesia, meu primeiro foi gravado em 2006 e se chama “RESSONÂNCIAS” e o gravei com o sitar indiano do grande músico ALBERTO MARSICANO. Vou reunir esses projetos em minha resposta s como sendo de curto ou médio prazo.  A longo prazo, tenho como projeto a organização da obra completa de minha mãe, a escritora ELZA A. RAMOS AMARAL , e também a intenção de escrever uma peça de teatro.

9 - Sugira uma autora e um livro (contemporâneos).

Vou sugerir a excepcional escritora contemporânea portuguesa Teolinda Gersão e, entre suas obras, o extraordinário livro “Os Guarda-Chuvas Cintilantes” (Caderno I, Diário)  que foi lançado inicialmente em 1984, tendo tido segunda edição em 1997 e terceira edição agora em 2014. É uma obra primorosa, que navega e dança na profundidade das reflexões existenciais com a leveza de viandantes entrelinhas, na força e na suavidade dos hiatos, nos retratos quase tácteis de todas as nossas trilhas. Construído com arte, engenho, maturidade e altas dosagens de inventividade, é um dos meus livros preferidos da autora e é muito interessante o fato de já ter sido chamado pela crítica de livro “sobre tudo". Bela e instigante obra da premiadíssimo Teolinda Gersão.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

A pergunta que gostaria que me fizessem é a seguinte: Com qual outra expressão artística você se relaciona e qual a relação desta com a sua literatura, com o seu processo de escritura?
E a resposta seria: Além da literatura, relaciono-me bem de perto com a música. Talvez por ter estudado música desde a infância, instrumento, violão erudito, e teoria, harmonia, na adolescência e, depois por ter feito também a Faculdade de Música, paralelamente à Faculdade de Direito.  Ou simplesmente porque a música em mim pulsa, é algo visceral, orgânico. Ouço música quando escrevo. Não sempre. Mas na maior parte das vezes. Ouço música quando leio.  Quase sempre. O ritmo, em tudo o que escrevo, é importantíssimo. Sinto as pausas, os acentos tônicos, as melodias. Recorto compassos. Refiro-me a instrumentos, orquestras, à música de câmara, a andamentos musicais, a elementos deste vasto e envolvente universo, mas jamais o faço propositadamente. É natural e espontâneo em mim. Também há personagens músicos tanto em minhas narrativas como nós poemas e, inclusive, no meu romance. Existe, portanto, em meu trabalho, uma espécie de simbiose entre literatura e música. Em um de Meus livros, especialmente, ENCADEAMENTOS, que é de 1988, esta relação é mais íntima e melhor explorada. Este livro foi objeto da tese de Mestrado da Profa. Dra. ANNA LUIZA CAMPANHÃ DE CAMARGO ARRUDA BAUER, em 1993, na PUC de São Paulo. A música está na raiz do poema. Se pensarmos nos aedos gregos, por exemplo, restará sempre clara a conexão entre as duas artes.

            
BEATRIZ H. RAMOS AMARAL
Escritora, Mestre em Literatura e Crítica Literária

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