sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Contos que nada contam 21 (Não passa de amanhã) - Emanuel Lomelino

Não passa de amanhã

Serôdio semicerrou as pálpebras numa vã tentativa de enxergar os dois vultos embaciados, que passavam diante de si.

- Tens de ir ao oftalmologista! – aconselhou Beatriz pela milésima vez.

- Um dia destes…

- Respondes sempre isso, mas o dia nunca chega.

- Ando com o tempo ocupado.

- Pois. – disse Beatriz num suspiro de enfado. – Quando cegares de vez, quero ver como vais ocupar o tempo. – sentenciou.

Serôdio sentiu todo o impacto das palavras proferidas pela esposa, mas não retorquiu. Sabia que a preocupação dela era legítima e verdadeira. Nos últimos meses os seus olhos revelavam a extensão do cansaço provocado por anos e anos de esforço a que tinham sido sujeitos. O óculo de relojoeiro ainda conseguia disfarçar a deterioração das duas vistas, mas ler os jornais diariamente, aquilo que mais gostava de fazer quando não estava a arranjar os mecanismos dos relógios, passou a ser uma tarefa árdua. As letras encavalitavam-se umas nas outras e, pouco a pouco, perante as dores que sentia para tentar decifrar o corpo das notícias, Serôdio começou a ler somente os títulos, e depois apenas as letras garrafais das capas. Mas o pior de tudo era quando queria ajudar Beatriz na cozinha. Os olhos já não ajudavam a identificar os frascos dos temperos e, acaso ela não estivesse atenta (às vezes acontecia), lá tinham de comer salada temperada com pimenta branca em vez de sal, ou sopa com vinagre em vez de azeite. Pelo menos por ela, a sua companheira de uma vida, ele tinha de arranjar tempo.

- Não passa de amanhã! – disse ele agarrando a mão de Beatriz.

EMANUEL LOMELINO

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