O novo eremita
Tibério olhou a paisagem e decidiu que aquele era um bom lugar para descansar. Encostou a mochila na base de uma oliveira, descalçou as botas, que lhe vinham torturando os passos, tirou as meias rubras de sangue e mergulhou os pés macerados no pequeno e cristalino ribeiro, deixando que a correnteza lhe limpasse as feridas.
Suportou o doloroso incómodo sem perceber se a dor sentida era provocada pela temperatura, quase gelada, da água ou pelo contínuo toque do líquido nas inúmeras chagas abertas.
Tentou abstrair-se das moléstias centrando a sua atenção no vale que se estendia diante dos seus olhos. Lá, bem ao longe, ainda vislumbrava a pequena vila onde estivera, pela manhã, na intensão de comprar alguns mantimentos, mas cuja carga energética fez com que apenas a atravessasse, como quem foge de uma alcateia faminta. Desde o primeiro instante, sentiu que não era bem-vindo. Os olhares inexpressivos de todos - das crianças pequenas até aos velhotes enrugados - eram aguçadamente mais ameaçadores do que o tráfico veloz de uma autoestrada movimentada. Tibério sentiu que, a qualquer momento, podia ser abalroado pela fúria explosiva que esses rostos tinham, mas escondiam.
Tal como sucedera, dois meses antes, quando decidiu abandonar toda a sua vida na grande metrópole, para não ser contaminado pela idiotice dos pensamentos modernos, também a fuga da pequena vila o fez reflectir na sua postura. Ainda não conseguia entender se estava a ser fraco ou audaz porque não sabia identificar a ténue linha que separa a covardia da coragem.
A única certeza de Tibério era não ter forças, nem espírito, para enfrentar a mentalidade mentecapta das novas gerações que, na escassez de argumentos lógicos e válidos, tentam impor, através do confronto físico, as suas revoluções ideológicas. São moralistas sem moral (manifestam-se, despidos, contra a nudez de estátuas); idealistas sem ideias (são desocupados a lutar em favor do ócio); são incoerentes nas suas redundâncias (querem um modo de vida ambientalista, sem extração de minério nem combustíveis fósseis, mas não abdicam dos seus telemóveis de quartzo, gálio, lítio, tântalo, tungsténio, entre outros minerais, tampouco abdicam de usar poliéster sintético, acrílico e spandex nas suas tendas de campanha).
No meio dos seus pensamentos, Tibério deu conta de estar a ser observado, do outro lado do ribeiro, por uma lebre. No momento que os olhos de ambos se cruzam, o pequeno animal moveu a cabeça, que o humano entendeu como um gesto de aprovação.
Hoje, Tibério é um eremita, completamente afastado do mundo moderno e, ao contrário dos contestatários de fachada, vive a sua noção de sustentabilidade sem impor, seja o que for. Aprendeu que medo e valentia andam de mãos dadas, e um acto corajoso vindo de um cobarde ou demonstração de fraqueza de um bravo têm o mesmo valor.
EMANUEL LOMELINO
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