Diário do absurdo e aleatório
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Sonhei que as páginas de um caderno abriam as linhas, como bocas famintas, para se alimentarem das palavras que, devoradas, ficavam caducas na sua essência.
Os verbos perderam força, os adjectivos secaram e os substantivos cortaram os pulsos com as vírgulas afiadas, com medo de ficarem, eles próprios, enfermos de amnésia.
De repente as metáforas deixaram de ser funcionais e os pontos de interrogação tentaram agarrar-se aos rodapés íngremes como penhascos, numa tentativa de protelar a sua extinção.
O apocalipse parecia estar a ganhar vida quando, no momento em que o frémito de todos os vocábulos pegou fogo, as labaredas envolveram o caderno que começou a contorcer-se até transformar-se num monte de cinzas-negras e um sol apareceu no horizonte anunciando renovação.
As palavras sacudiram o pânico dos ombros, deram os braços chamuscados, umas às outras, e prometeram continuar a sua função de retratar por extenso toda a amplitude das línguas de Babel.
EMANUEL LOMELINO
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