segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O enterro do baiacu - ANA LIA ALMEIDA

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A maré alta sorvia as lágrimas da menina assustada. Gritava e chorava de medo daquele bicho fedido cheio de espinhos em que ela havia quase tropeçado. Morto na areia, sobrevoado por uma moscaria, jogado para cima e para baixo pelas ondas.
As primas da menina, uma de cada lado, a amparavam pelos braços, num misto de nojo e susto.
A tia, nervosa, queria saber se ela havia pisado no baiacu. "Bai-a-cu", soletrou baixinho enquanto balançava a cabeça dizendo que não. Até o nome do bichinho era feio, coitado. Como pode um ser vivo tão horroroso habitar um oceano cheio de conchinhas e pedrinhas coloridas?
A tia sabia dos perigos daquele peixe. Bem pequena, o pai a levava para pescar de vez em quando e assim aprendera alguns segredos do mar.
Contou às meninas do medo que teve de um baiacuzinho inflado na rede de pesca do avô delas. O inchaço é a proteção deles, ensinava, porque nadam muito devagar e não conseguem fugir quando estão em apuros.
Aquele bichinho não era apenas feio, mas também muito fatal. O veneno que guarda é o bastante para matar trinta homens. “Tia, eu vou morrer?”, a menina voltou a chorar.
A moça parou os olhos numa lembrança de seu pai, a morte de um conhecido enganado por um pescador. Havia um desafeto na história, um assunto de traição, parece que o sujeito havia engravidado a noiva do pescador.
Acabou comendo carne de baiacu envenenada sem saber. Seus lábios e dedos ficaram dormentes e ele se tremia todo quando começou a vomitar por cima e por baixo. Já estava morto ao chegar no hospital.
Mas a menina sequer havia tocado no bicho, tinha, portanto, a vida inteira pela frente. Tranquilizada, resolveu enterrar o bichinho com as primas, para ninguém mais se arriscar naquela praia. Além do mais, todas as gentes e também os peixes merecem um fim digno.
Completando as solenidades fúnebres, as meninas foram providenciando um rápido velório. Ali mesmo, na beira da praia, enrolaram as cangas na cabeça em modo de carpideiras. Entoaram um padre-nosso, "rogai por nós, pescadores", as mãos unidas até o amém.
A viúva não compareceu, anunciaram em tom solene, no encerramento da cerimônia. Nadava já com outro peixe, nas redondezas do oceano Atlântico.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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