terça-feira, 30 de abril de 2019

NONA DEMÊNCIA (excerto) - JOÃO DORDIO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Vinha a chegar...

Em todas as vidas estive a chegar quando o molde do corpo já
chamava por ti pelo passado. Eram só letras, mas dos lábios vieram
outros espaços de lábios que já não eram os meus espaços. O adeus
nunca chegou a entrar nos meus ouvidos. O adeus não veio a chegar...

Cheguei ao final da tarde à aldeia que me viu nascer. Sempre foi
uma biblioteca linda, com magníficas prateleiras de histórias que, um
dia, também lá chegaram. Nasci e ali viram-me também a chegar.
Certos deuses e demónios, certas fadas e duendes. Até dragões!
Nasci e viram-me crescer. Viram-me voar e chegar pelas nuvens.
As dos livros aos quadradinhos que devorava como oxigénio...
A luz de dentro das não-almas dos que sobrevivem apenas na escuridão
surpreendeu o mundo e a minha aldeia cresceu. Passo por
lá todas as noites a cumprimentar os meus fantasmas e os outros
seres das vidas apertadas que os prédios-livro obrigam a sofrer...
Parei de entornar letras absurdas pelas frases loucas quando
abandonei a aldeia. A biblioteca fecha cedo e como o triciclo tem
a roda torta e o acento desconfortável não quero chegar tarde ao
jantar. Não vejo a hora de crescer e viver o que tenho a viver num
corpo mais desenvolvido. Coloquei uma série de prédios-livro na
mala da escola e lá fui.
- És tu? Já em casa a esta hora? Não tiveste aulas?

EM - A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS - JOÃO DORDIO - IN-FINITA

segunda-feira, 29 de abril de 2019

CARTAS DE AMOR, À MODA ANTIGA - LÍDIA MOURA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Meu querido,
espero que esta carta vá encontrar-te de boa saúde.
- Eu aqui, com o trabalho do campo. Enquanto espero o teu regresso. Árduo o teu trabalho de escrita em prol dos outros...
As vindimas quase feitas e as ramadas desfeitas, dizem que as noites serão do Outono. E o vinho na adega, quer ser rubi, parece ser ano de boa colheita...
Esta madrugada acordei, com saudades Tuas.
Por companhia, tive um pardal no parapeito. Acendi a luz da candeia para alumiar a brancura do papel. Enquanto Te escrevia o “Pissarito” cantarolava, querendo anunciar a alvorada.
Do milho, também já se fez a colheita. Estendido na eira, é manjar para os pardais que pernoitam nos beirais...
Meu Amor, por hoje, fico-me por aqui, o dia já nasceu, as “[lindas caseiras]” chamam por mim.
Levar-Te-ei no meu peito
e deixo-Te um beijo de amor.
Lídia Soares de Moura
[ Lousada, 9 Outubro 2018 às 07:16 ]
--------------------
A cinco de Outubro,
... por ‘entre(as)linhas’ , fui-te conhecendo...mas fora a cinco de Outubro que meus olhos adornaram os teus, primeiro eu depois tu... nesse teu sorriso de Homem menino, declamavas um poema que te era familiar... não fosses Tu filho do Poeta, que nasceste no verde campo perto do rio... por coincidência ambos têm o mesmo nome... Tu e o Rio. Mesmo assim, és mais Mar, não fossem teus olhos, também azuis... outrora verdes, iluminados pelo Sol.
Estávamos em [‘boa vista’], a sala era pequena, para tanta afluência em homenagem ao ilustre Poeta.
A relativa distância e no silêncio do olhar, por entre envergonhados e fugazes sorrisos, pedíamos um beijo seguido de um ‘Olá, boa noite!’ e um abraço, para selar o nosso primeiro encontro... e fora o Poeta! Sim, o Poeta, que também tinha nome de [ ‘ pessoa’ ] que nos haveria de apresentar, “Por todas razões e mais uma.”

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

domingo, 28 de abril de 2019

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL... MARIA TERESA MOREIRA

Agradecemos à autora MARIA TERESA MOREIRA a disponibilidade em responder ao nosso questionário


1 - Como você vê o papel da mulher na literatura atual?

Vejo o papel da mulher na literatura hoje sendo ainda mais urgente e fundamental, especialmente no cenário nacional. Estamos ganhando espaço e respeito, aos poucos e com muito trabalho, e nossa participação traz uma voz única, importante, criadora, reflexiva, que não pode se calar. Há muitas mulheres escrevendo, coisas lindas, e fazendo-se ouvir, encontrando espaços, criando brechas, fazendo pensar! Isso me entusiasma e me impulsiona a produzir, sentindo-me responsável e comprometida e impulsionada a compartilhar também meu olhar.

2 - Em que medida o universo feminino influencia na hora de escrever?

Respondo de modo profundamente pessoal, e digo que cada palavra que escrevo brota do meu ser feminino. Não há como ser diferente! Escrevo como mulher, a partir de minha maneira de ver, sentir e expressar de mulher, que sou! E acredito que esta é a riqueza da literatura feminina! Não quero, com isso, romantizar e tratar essa questão de modo superficial e “cor de rosa”. De modo algum! Refiro-me à força e à habilidade feminina de dizer, de lutar, de criar, de uma maneira que nos é tão peculiar!


3 - Em que corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?

Gostaria de poder responder essa questão de maneira muito acadêmica e embasada, citando autoras e influências… mas não seria verdadeira. Escrevo por necessidade, escrevo transbordando. Não tenho pretensão nenhuma exceto a de expressar o que experimento e o que ouço, de maneira que fale e toque e faça pensar e ajude a viver. Não sou técnica, ainda que esteja sempre procurando, sim, aprender mais para expressar-me melhor. Mas não consigo encaixar-me, enquadrar-me.

4 - Que importância dá aos movimentos de integração da mulher?

São fundamentais! Me parecem importantes por dois motivos principais:  para nós mulheres, para nos unir, para identificar nossas forças e capacidades, talentos e possibilidades, e, por outro lado, para mostrar à sociedade, à nossa cultura ainda tão impregnada de uma mentalidade patriarcal que estamos unidas, e que abraçamos nossas forças e capacidades, nossos talentos e possibilidades. Esses movimentos nos ajudam a conquistar o espaço que nos cabe!

5 - O que acredita ser essencial para divulgar a literatura?

Essencial? É uma pergunta importante…! Não somente o que é importante ou o que é possível ser feito para divulgar, mas sim, o que é realmente essencial...?
Eu diria que essencial mesmo é ser uma literatura pertinente, utópica e verdadeira, humana e eloquente, atual e instigadora. Correndo o risco de ser um pouco ingênua e idealista, digo que acredito que se a literatura cumprir o seu papel mais elevado, ela será desejada e buscada.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

Eu diria que os pontos positivos e negativos do universo da escrita são praticamente os mesmos pontos positivos e negativos de viver…!

7 - O que pretende alcançar enquanto autora?

Amei esta pergunta! Não que eu tenha grandes pretensões quando escrevo, como já mencionei em outro tópico, mas porque respondê-la me dá a oportunidade de dizer um pouco da minha paixão pela vida, pelas pessoas, pela Beleza, pela Palavra…! Pretendo alcançar o lado mais humano meu e de quem me lê, gerando tal silêncio interior que seja capaz de gerar um novo fôlego, um novo olhar, uma nova esperança, e que seja assim uma peça na construção de um mundo melhor, criando uma onda de amor.

8 - Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

A curto prazo estou trabalhando num projeto de levar Poesia às pessoas, num trabalho muito íntimo e pessoal, formando grupos dos mais diversos universos femininos, que se juntem para conversar e dialogar a partir da Poesia. Tem sido uma realização pessoal esse contato direto com as pessoas! Tenho dois livros que serão lançados neste ano, um já no mês de março próximo. A longo prazo, quero criar um espaço físico que seja Casa da Poesia, voltada especialmente para mulheres. Estou ainda amadurecendo este projeto.

9 - Sugira uma autora e um livro (contemporâneos).

Sugiro as obras de Valéria Victorino Valle e o livro que sugiro é “Zona de desconforto” de Lindevania Martins.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

Gostaria que me perguntassem sempre aquilo que me dá oportunidade de revelar-me, mais e mais. Tenho quase uma obsessão por entregar-me, por revelar-me. E me entregaria inteira ao respondê-las, como o fiz respondendo a estas perguntas…!


BIOGRAFIA

Maria Teresa Camargo Regina Moreira, pedagoga formada pela Unicamp, viveu em doze cidades, em três países diferentes. Ganhadora de concursos aos 8 e aos 13 anos em Campinas. Publicou artigos em sua vida adulta em revistas religiosas. Publicou o livro “Como educar e ser feliz” em 1993 pela editora Raboni. Publicou seu primeiro livro de poesias, “50 Tons da Menopausa” de forma independente em 2017. Seu poema “Expectativa” foi selecionado para o livro “100 Melhores Poetas Lusófonos Contemporâneos 2018” lançado pela Literarte. Tem poesias já publicadas e a serem publicadas na Folhinha Poética. Teve também poemas selecionados no projeto “Declame Para Drummond 2018”, para a exposição “O Brasil que eu quero” e para a Coletânea “O Protagonismo feminino no cenário nacional”. Prefaciou o livro “Antes que o dia termine, agradeça”. Faz parte do Mulherio das Letras.

ANDROIDES NO BIG BANG (excerto) - KETELY TEMPER ALMELA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Um biônico, um androide, um ciborgue estava no “Big Bang”. Seguia cronologicamente o seu destino de homem robô. Ciborgue era a peça principal para a célebre explosão dar vida. Uma ginóide surge em seu fado. O novo androide parece ser muito mais avançado tecnologicamente falando.
— Como assim explodir o planeta para as estrelas darem vida, a lua?! — pensava Ciborgue.
Realmente a robô, a ginóide era bem mais inteligente. A placa dela talvez fosse uma invenção de algum físico de alguma federação ou instituição de docentes em primeiros lugares na área da física. Apesar de estarmos em um século que pouco o universo desabrochou fisicamente falando, referindo-se ao ano de 1931. Os estudos da física continuavam os mais avançados para conseguir tirar a casca do universo como se fosse um ovo. Sem dúvidas a evolução do mundo estava na física.
E de repente a radiação eletromagnética faz bem, mais bem distante de nossas cabeças:
— Brooooom, brooooom, brooooom!
Como sou uma androide continuo existente ao mundo. Em um bilhão de anos depois olho para o céu e começo a ver as primeiras estrelas que dera vida pela explosão da evolução do universo. O que era a claridade, luz em um mundo ainda escuro que nem sabia dizer o que era noite ou dia?! Jamais saberia descrever se eu não fosse uma androide.
Meus inventores nem mais existiam. Acho que fui a primeira androide a viver tantos, mas tantos séculos, anos. Em um dia naturalmente sem energia solar alguém chegava, o sol. E se estralasse os meus dedos e apagasse a luz do mundo e fizesse a mesma ação e o acendesse. Um ou uma androide solar será?!
Ciborgue continuava ativo também. Não queria perguntar quantos bilhões de anos seguintes estávamos. Eu sempre soube que aquele robô era uma criação com placas antigas e bem pouco modernas.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

sábado, 27 de abril de 2019

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL... MARI VIEIRA


Agradecemos à autora MARI VIEIRA a disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 – Como você vê o papel da mulher na literatura atual?

Ainda de luta. Devemos comemorar o aumento do número de novas escritoras nos últimos anos, no entanto as mulheres ainda são minorias nos espaços de prestígio da literatura. São minorias nos grandes prêmios, são menos lidas e criticadas nos veículos de crítica literária, são minorias como críticas literárias, portanto além trazer para o universo literário novos olhares com suas produções artísticas ainda precisam desbravar espaço para o crescimento de sua carreira.

2 – Em que medida o universo feminino influencia na hora de escrever?

Ser mulher molda meu olhar e minhas vivências, mas percebo que o que é tradicionalmente chamado de universo feminino foi (e está sendo) questionado, ampliado, modificado para que a mulher permita viver a experiência que desejar num universo amplo e irrestrito, portando tendo me apropriar dessas novas perceptivas e escrever sobre o que me move e me comove no mundo.

3 – Em que corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?

Não faço ideia. Não penso nisso quando escrevo. Escrevo apenas porque a escrita é uma forma de respirar.

4 - Que importância dá aos movimentos de integração da mulher?

São absolutamente necessários. São meios de questionar o cânone, os veículos que publicam resenhas de novas obras e que quase sempre ignoram as publicações de mulheres e também os prêmios que poucas vezes prestigiam mulheres. É um meio de dizer ao mundo que outras subjetividades existem e que precisam urgentemente serem consideradas. 

5 – O que acredita ser essencial para divulgar a literatura?

Uma rede bem estruturada de mulheres e homens parceiros, especialmente se consideramos que temos pouco espaço nos meios tradicionais. 

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

A luta quase solitária por espaço é um ponto negativo, a disputa injusta em um universo majoritariamente masculino também. Positivo é a beleza de experimentar contar sobre o mundo, os dramas e as alegrias humanas do meu jeito, de saber que vai nascer um texto com meu DNA. 

7 – O que pretende alcançar enquanto autora?

Meu espaço, minha história, minha liberdade de existir, ampliar a participação de mulheres no universo literário também é um sonho.

8 – Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

Um livro solo é o tenho em mente.

9 - Sugira uma autora e um livro (contemporâneos).

Conceição Evaristo – “Olhos D`água”, “Ponciá Vicêncio”, “Poemas de recordação e outros movimentos”. 

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

Por que escreve?
Para que a vida tenha sentido.

BIOGRAFIA
Mari Vieira nasceu Marilene Vieira Costa nos longínquos cantos do Vale do Jequitinhonha-MG. Vive em São Paulo/SP há mais de 20 anos. Publicou pela primeira vez em 2017 na Série Cadernos Negros V40 – Contos afro-brasileiros- Quilombhoje.

DESENLACE DE FAMÍLIA - GIOVANA DAMASCENO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Aquele rosto me era estranho. Não porque jazesse inerte, dentro do caixão. Não porque, coberto de flores, não pudesse reconhecer-lhe o físico. Não porque cheirasse mal. A tez morena, avermelhada, feito índio; os cabelos brancos encaracolados; os lábios finos, sem curvatura, como se traçados num único risco de dois lápis. Aquele rosto me inspirava desprezo, somente. Não me interessava recordar dele vivo, pois à memória retornaria a expressão de fúria nas lides diárias ou descendo o cacete nas filhas.
Agora a carcaça do brutamontes estava cercada pelo choro das mulheres que subjugou. Não atinava como pessoas tão judiadas fossem capazes lamentar a morte de seu carrasco. Olhei ao redor e não encontrei a caçula, a única das filhas que conversava comigo, a mais doce e cordata. Havia algo que nos unia, um laço entre almas. Não reagia às corretivas do pai, ao contrário, demonstrava afeto por ele, não manifestava revolta pelo tratamento opressivo, não chorava e nem reclamava pelos cantos. Apesar de castigá-la como às outras, Rejane era a única filha que contava com um mínimo de carinho e certo excesso de atenção do “tio” Cadô. As irmãs se ressentiam, enquanto a mãe notava a diferença, mas deduzia como preferência natural - quem não tem seu filho dileto? Compreenderia se qualquer das filhas faltasse ao velório, no entanto foi Rejane que não velou o pai.
E eu? O que estava fazendo naquela sala escura com cheiro de flor e vela, suor e café? Fora arrastada pelo meu irmão, Lucas, sem explicações; disse “morreu” e me tirou de uma festa para o velório. Não tivesse apenas treze anos e igualmente criada abaixo de porrada, teria questionado “E eu com isso?”.
Seria a minha primeira vez na quermesse, sem a mãe; a primeira vez de olhos sombreados e batom; a primeira noite com amigas. Combináramos de andar na festa de braços dados, pedir música e mandar mensagens aos rapazes pelo autofalante. Não poderia passar das dez horas, sob a ameaça da varinha de marmelo de papai, que me aguardaria na varanda, a contar os primeiros segundos de atraso. Como “tio” Cadô fazia com Rejane, papai me cobria de mimos exagerados, contudo não me poupava das sovas quando lhe convinha ou se me rebelasse contra seus afagos melosos.
Quis me afastar do caixão, porém meu irmão me segurava, e se mantinha contrito diante do corpo do homem que admirara. Temente a Deus, frequentava a igreja aos domingos, pai exemplar, bom provedor, trabalhador, honesto, corrigia esposa e filhas com precisão, educava com rigor, rude, tosco, grosso, mau, violento, cruel. Na verdade, não era parente nosso; amigo chegado de papai, fora escolhido para apadrinhar Lucas. Embora as duas famílias tenham se constituído praticamente juntas, até então, mamãe tolerava essa amizade em silêncio.
Não assisti ao enterro. Acompanhei o caixão sair no carro funerário, entrei em casa, do outro lado da rua, e emburrei. Sobre a causa da morte, passei muitos anos sem saber. No velório escutara rumores sobre um tombo da marquise e minúcias que não se arranjaram de modo lógico no meu raciocínio. Este mês faz dez anos que “tio” Cadô se foi. Também são dez anos sem ver Rejane, a filha que pagou na cadeia pelo assassinato do pai, com a paulada que o derrubou do beiral da janela, onde emendava um fio. Deve estar prestes a sair da prisão. Agora, se quiser, poderá viver. Eu escolhi fugir.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

sexta-feira, 26 de abril de 2019

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL... MARLI DIAS RIBEIRO

Agradecemos à autora MARLI DIAS RIBEIRO a disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 – Como você vê o papel da mulher na literatura atual?

Acredito que podemos ir além do que já conquistamos e compreendemos que a escrita e a leitura sempre foram grandes desafios no mundo. Historicamente fomos abrindo espaços nesse universo letrado. Na antiguidade apenas aos homens era dado o direito a escrever, eles iniciaram os processos de escrita por uma necessidade de trabalho, para anotar a quantidade de animais que tinham, guardar a informação e controlar os animais que eram vendidos, que se perdiam ou que morriam. Eram breves anotações comerciais e alguns documentos. Ainda em tempos passados os sacerdotes podiam escrever livros porque se acreditava ser a escrita um dom sagrado concedido pelos deuses a sujeitos escolhidos. Essas pessoas eram as únicas que tinham permissão para ler os livros sagrados. Ainda hoje a ideia de dom ou capacidade nata é associada a essa visão dogmática do ato de escrever. Mas acreditem, todos podem escrever… Todos! E nós mulheres estamos trilhando com muita luta e persistência esse caminho na literatura.

2 – Em que medida o universo feminino influencia na hora de escrever?

As mulheres tem uma maneira única, especial e diversificada de enxergar o mundo. A escrita feminina pode ampliar e fortalecer a muitas formas de nos apropriarmos do conhecimento. Escrever é uma ação de se posicionar no mundo e de fazer história. Podemos registrar nossa trajetória por meio de nossas palavras escritas.

3 – Em que corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?

Não me sinto vinculada com exclusividade a uma corrente literária. Gosto da diversidade e da liberdade de poder transitar. Talvez o existencialismo me chame atenção na  literatura, ou mesmo no cinema, porém prefiro não me enquadrar.

4 - Que importância dá aos movimentos de integração da mulher?

O mundo ainda não entendeu o papel da mulher e sua força. Continuamos lutando por direitos primários como a própria vida. Nossos movimentos tem mostrado que a inércia não pode fazer parte de nosso cotidiano. Ainda precisamos de mais seu espaço na sociedade, ainda precisamos de mais dignidade e respeito. Nossa liberdade de expressão ainda move-se presa e submetida a falsas liberdades e frágeis conquistas.

5 – O que acredita ser essencial para divulgar a literatura?

Viver literatura, escrever, ler e fazer acontecer literatura custa muito no Brasil. Uma parcela pequena da sociedade pode comprar ou publicar um livro. Grupos e movimentos como este incentivam e ajudam a promover ações que dão vida a muitas mulheres escritoras. Decidi escrever meu primeiro livro (Por uma escrita rebelde no estrito senso - AVA editora Artesanal) em uma pequena editora independente e artesanal como uma forma de indignação aos altos custos da produção literária nacional.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

Não tenho como listar negatividades. Acredito na arte de escrever, nas possibilidades de aprendizagem em cada palavra posta no mundo. A escrita comunica, une, indica e reforça nossa história de vida. Na escrita eternizamos nossos passos no mundo.

7 – O que pretende alcançar enquanto autora?

Meu principal objetivo quando comecei a escrever era dizer que é possível sim, podemos sim, escrever. Democratizar a literatura. Sou iniciante na arte da palavra, então alcançar outros espaços, conhecer outras formas de escrever, cultivar e estimular a leitura seja meu principal objetivo.

8 – Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

A curto prazo é divulgar os textos que já escrevei e alongo prazo poder produzir livros para quem não pode comprar.

9 - Sugira uma autora e um livro (contemporâneos).

Do"Do que É Feita uma Garota", de Caitlin Moran.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

A educação pode mudar o mundo?
Responderia que sim, pois acredito no poder da palavra, na leitura das letras e do mundo. Na transformação pela escrita literária. A escrita tem um vinculo muito forte com a educação, e sendo educadora, não posso deixar de falar sobre esse tema. Mudar as pessoas pela literatura e por ela transformar esse mundo tão belo e, por vezes, tão cruel em que vivemos.


BIOGRAFIA
Professora, palestrante e escritora. Tem experiência em gestão escolar, coordenação e formação de professores e gestores. Mestre em Educação, Pós graduada em Educação no Sistema Penitenciário e Especialista em Gestão Escolar. Formação Internacional em Liderança Escolar. Tem artigos e textos publicados em livros e revistas. Criadora e escritora no Blog http://www.eudiretora.

A MULHER DO OUTRO LADO DO ESPELHO - GABRIELA RUIVO TRINDADE

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Não sei o que se passa com os espelhos desta casa. Nunca me devolvem a mesma imagem. Às vezes descubro o rosto de uma mulher jovem, muito mais jovem do que eu. É bonita e sorri-me. O sorriso dela tem a limpidez da primeira luz da manhã. O corpo também é jovem e tem a mesma frescura que descobrimos no ventre da fruta madura. Gosto de olhá-lo e de namorar com ele. Namorar apenas com o olhar. Habitá-lo como se fosse a minha casa. Fingir que não é meu, e que não sou eu que o olho, mas o olhar do desejo. Desejar exige distância e alguma imaginação. De outras vezes, é uma mulher velha que me olha. Cabelos grisalhos, rugas ao canto dos olhos e costas cansadas. Adivinho-lhe o olhar tingido de um cinzento matizado onde se entrelaçam dores muito antigas. Vêm-me à memória os novelos de linha matizada com que a minha avó crochetava naperons de renda para a mesa da cozinha e para o cesto do pão. Dura apenas breves instantes, este relâmpago. A mulher velha não sorri, apenas me fita; os seus olhos, porém, não se detêm em mim, atravessam-me como uma seta, evitam os meus como se tivessem medo. Ou talvez o medo seja meu. De me tornar velha como ela. Rugas, achaques, doenças? Envelhecer é voltar à infância, sem os privilégios da infância. O corpo deixa de ser nosso, assim como os dias, a vontade, os movimentos. Perdemos autonomia. Voltamos a precisar que cuidem de nós. E esse gesto, o de nos colocarmos nas mãos de outra pessoa e ficarmos inteiramente à sua mercê, é o que verdadeiramente nos tira o sono. De outras vezes, ainda, encontro na superfície do espelho a face rechonchuda de uma mulher gorda. As carnes da mulher gorda avolumam-se nos meus olhos. Tem um sorriso patético e triste. Parece ainda escutar a voz distante da mãe: Ao que te deixaste chegar! A voz da mãe, num misto de compaixão e repugnância. Mas a verdade é que também a ela a gordura do seu corpo a embaraça. Há gente para quem olhar uma mulher gorda é o mesmo do que ser insultada por ela. Essas pessoas, se tivessem poder para isso, inventariam uma lei que proibisse os gordos de saírem à rua. Naturalmente, construiriam lares e casas de acolhimento onde estes se pudessem albergar longe dos olhos do mundo. Tudo com as máximas condições de higiene e comodidade, evidentemente. Coitados, no fundo são doentes, pensam, num misto de piedade e alívio por não ser contagiosa, esta doença. Nesta altura a mulher do outro lado do espelho despe o sorriso e a melancolia juntamente com a roupa e devolve-me a sua nudez, sem pudor. Olho o seu corpo, incrédula, onde descubro a languidez das formas de uma mulher madura. Uma mulher da minha idade. Sorrio e namoro-me, piscando o olho ao espelho, que novamente se diverte a iludir-me a percepção. Os meus olhos deixam de ser meus. Na-morar é uma outra forma de morar. Morar dentro, e fora de nós. Dentro, e fora do outro. Porque só quando amamos percebemos que dentro e fora se confundem.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

quinta-feira, 25 de abril de 2019

NONO ESCRITO (excerto) - JOÃO DORDIO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

A casa estava velha, mas vi-te à mesma nua pela sala!
- Pára de beber, Poeta!
Escuta...
A casa estava muito velha, com as paredes a precisarem de uma
pintura urgente, mas vi-te despida a passear à minha frente! A casa
estava velha, sem móveis e sem quaisquer adornos de decoração,
mas tu passaste... nua e bela, ali mesmo à minha frente!
A minha mente é uma casa velha onde a tua imagem renasce
em criança já com corpo de mulher - aquele corpo que me habituei
a abraçar e a possuir na paixão dos sonhos! - e com aqueles lábios
com o molde dos meus e com tantos gemidos!...
- É apenas mais uma garrafa que ficou vazia!
Cala-te! Não estás a ouvir os gemidos que inundam ainda a minha
casa velha?...

Hoje passeio pelos corredores da minha casa velha sempre abraçado
a ti. Coloco a toalha na mesa já sem haver mesa, coloco os
copos de ar para despejar a garrafa que também não existe...
Todas as noites faço um brinde na minha casa velha aos momentos
que ainda tenho contigo e cada vez que os escrevo, apaixono-
me novamente por esse corpo nu que não sai da frente dos
meus olhos! E cada vez que os descrevo, faço-o com uma caneta
velha que só sabe executar a sua missão num bloco velho onde o
negro da capa dá cor a todas as noites, nas tais noites em que só eu
me escureço...

EM - A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS - JOÃO DORDIO - IN-FINITA

quarta-feira, 24 de abril de 2019

MULHERES DE LUTAS - ELIETE MARRY

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Era primavera de 1979, nos arredores do Sítio do meio, numa casinha azul celestes, telhado baixinho, chão batido da cozinha. Entre a escuridão da noite gelada, por volta das vinte e duas horas da noite, nascia uma linda menina, de pele branca como a neve, olhos semelhantes a cor da amora em tempos de inverno e cabelos pretinhos como a escuridão na noite dos dias chuvosos. Era uma gracinha seus lábios vermelhos escarlate. Sexta filha do casal Maria e Cícero, dois protetores e sobreviventes da mãe natureza. O nascimento da pequena trouxe alegria ao lar, renovando a felicidade entre aquele casal. A menina crescia forte e saudável, batizaram-na de Maria, mesmo nome da mãe e por devoção a Nossa Senhora. Como todo ser vivo, nem tudo na vida é bênção e alegria. A família foi atingida pelos tempos de seca, logo não dava mais para alimentar os seis filhos, e era chegada a notícia de que Maria, a mãe estava a espera do sétimo filho. Que em breve se chamaria José Francisco. O chefe da família já não tinha mais como alimenta as nove bocas somente com o que colhia da terra e dos serviços de agricultor de aluguel. Com o agravamento da seca, o governo da época abriu um alistamento trabalhista chamado Serviços de Emergência. Era para trabalhar cavando açude e desmatando floresta, abrindo estrada, “melhorando o acesso a outros municípios”. Nisto, ocorria que os homens se deslocavam de seus lares, deixando mulher e filhos para trás por vários meses. Eles seguiam para trabalhar e mandar ajuda financeira para suas famílias. Era muito doloroso aquela partida que se repetia por longos períodos em muitas famílias e principalmente a do Cícero e Maria. Enquanto os esposos estavam fora trabalhando no tal serviço de emergência, as esposas ficavam cuidando da educação dos filhos e do serviço na roça. A Maria era mulher para homem nem um encontrar defeito. Brocava mata, limpava roçado, plantava milho, feijão, batata doce, macaxeira, colhia algodão e mamonas. Além das tarefas do lar, e incentivo aos filhos na educação escolar. Maria dizia a seus pequenos: Quero que vocês estudem para ter um futuro melhor que o meu e de seu pai.
E assim nessa labuta intensa e de áspera solidão do companheiro por força dos tempos cruéis, passavam-se dias e aparentemente infindáveis meses. Maria cuidara dos seus filhos, da casa e dos estudos dos moleques. Quando era dia de sábado dava gosto de olhar, lá ia Maria e seus seis seus filhos. Limpinhos cheirando a algodão florido no campo, cabelos lisos e sedosos feito a pele de vaga-lume em noite de lua cheia. Suas vestes eram surradas pelo batedor de roupa, mas todas bem alvas e engomadinhas. Era admirável vê aquelas gracinhas de meninos e meninas formando uma escadinha, atrás da mãe que tão bem os disciplinavam. A mais velha já havia casado com um moço lá da capital. Diminuíra assim uma boca, mas não a preocupação. Dizem que o marido dela era chegado a umas cachaças e quando bebia ficava metido a valente. Maria pegava o pequenino José escanchava nas costelas, duas galinhas magrelas para vender e com o apurado comprar fardas para os meninos estudarem. Depois de tantas idas e vindas, e com o trabalho pesado de sol a sol, viajando no lombo do jumento, Cicero se cansou com muito esforço e ajuda do presidente da República à época, recebeu uma carroça de tração animal e passou a trabalhar nos arredores de casa sem precisa mais se ausentar de sua família. Eu, Lily a sexta filha desses heróis segui o conselho de mamãe, estudei, sou pedagoga, alguns até me chamam de poeta, mas sou mesmo é professora. Hoje moro na fartura de águas do litoral da capital, ensino crianças a conquistar seu futuro. Mesmo com toda a modernidade e facilidade que a vida oferece, comparando aos tempos de minha infância, ainda ensino a mesma lição de 30 anos atrás: Estudem que vocês terão um futuro melhor que seus pais!

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

terça-feira, 23 de abril de 2019

EXU - DIVANIZE CARBONIERI

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Exu passeava pelo mundo com suas pernas desiguais, uma mais curta que a outra. Mais curta? Ele tem um pé lá no outro mundo e um cá na Terra, é por isso. Como o saci? Não, o saci é perneta. Mas talvez a gente também não veja uma perna do saci porque ela tá no outro mundo. É, pensando bem, pode ser. Exu tava triste porque não achava ninguém que quisesse brincar com ele. Por ser um deus, as crianças que ia encontrando não conseguiam ver a sua cara. Um deus? É, um deus. Lukács diz que o romance é a epopeia do mundo sem deuses. Não exagera, isto aqui não é um romance. Ah, tá. Exu queria muito conhecer uma criança pra quem ele não fosse invisível. Rodou e rodou. Um dia viu uma menina que tava só olhando o horizonte, sem fazer nada. O protagonista da história é Exu ou essa menina? Tava querendo que fosse ela. Até agora você só falou de Exu. Vou falar mais dela daqui pra frente. Tá. A menina tinha um olhar vidrado de quem pensa muito. Exu entrou dentro da cabeça dela. Por que o céu fica em cima e a terra embaixo? Quando a gente nasce é bom ou ruim? Se é bom, por que o bebê chora tanto? Quando a gente morre vai pra onde? Se a pessoa que morre continua existindo, por que nunca mais ela conversa com ninguém que tá vivo? Por que eu sou sempre eu e nunca outra pessoa? Que beleza de menina! Tão cheia de caraminholas, do jeitinho que eu gosto. Exu se pôs bem diante dela. E, pasme, ela foi capaz de enxergar ele! Qual é o momento significativo desse conto? O quê? Um conto não traz sempre um momento significativo na vida de uma personagem? É, mas para com isso, que eu não quero fazer metaficção. Certo. Nossa, como você é bonitinho! Exu era mesmo uma graça, com sua pele cor de chocolate, nariz redondinho e olhos brilhantes. Quem é você? Eu sou Exu, mensageiro dos deuses, guardião das entradas das casas, intérprete divino. Tudo isso? Sim, sou muito ocupado. Eu tenho um enigma pra você adivinhar. Eu adoro enigmas. Então, me diga, sabichona, qual é o livro mais bonito e mais importante do mundo inteiro? Nossa, era muito difícil essa pergunta porque a menina já tinha lido muitos livros lindos e importantes e visto outros tantos. Ela simplesmente não conseguiu responder. Exu então desapareceu rindo no ar. O maior prazer dele é mesmo colocar as pessoas num mato sem cachorro. A menina ficou com aquilo na cabeça por um tempão até que cresceu e esqueceu. Essa história não tem escalada da tensão, clímax? Não. Ih, que bicheira! Chiu! Um dia, quando a menina já era mulher feita, ela sonhou com Exu, que continuava muito lindo e sorridente. Ele levou ela pra cima de uma montanha bem alta e mostrou o mundo lá embaixão. Ela viu a si mesma andando por uma estrada bem longa, sem fim, passando por tudo o que tinha acontecido na sua vida até então. Nossa, era tanta coisa, coisa boa, coisa ruim. Ela entendeu que tudo estava interligado e que fazia sentido afinal, como se fosse uma história. Essa história não faz sentido nenhum. Daí, Exu deu pra ela um livrão bem colorido, e nas páginas do livro ela viu a história da vida dela escrita. E o mais legal é que ainda tinha um monte de páginas em branco. Isso é o que você ainda vai escrever do jeito que quiser e puder. Esse é o livro mais lindo e mais importante do mundo. E ela acordou. E daí? Daí, só isso. Esse é o denouement da história? É. Que coisa mais sem graça! Cala a boca! Viva Exu, companheiro das mentes inquietas!

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

segunda-feira, 22 de abril de 2019

DO DIÁRIO DE UMA "FELIZ SEM HORA" - PÁGINA 19443 - CONCEIÇÃO CRUZ

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Foi mister mais de meio século para a compreensão fazer-se clara e consciente!
Depois de vários dias de chuva, o radiante dia de sol: velhos amigos com filhos e netos crescidos: alegria do reencontro! O sentimento único: uma aura de amor banhava o ambiente! Lembrava a história da gota d’água: ao chegar ao oceano, a ele se integrara e a estória de gota ficaria guardada para sempre no passado porque agora existia tão somente o oceano! E uma nova página passara a ser escrita!
A luta tornara-se razão de vida. Do alto de mais de meio século, contemplara: o grande líder do antigo grupo falecera há 24 anos: sua memória estava intacta na presença amiga da esposa e dos filhos. O passado ressurgia: no início, estavam todos juntos! Mais de mil e quinhentos dias de convivência e, de repente, a necessidade de sair dali. No novo grupo, mais de dois mil dias! Até juntar-se a outro! Exatamente, no dia da morte do grande líder, tomara a decisão de abandonar aquele caminho e assim o fez.
No dia seguinte, marcado pelo sepultamento, ela assumia a posição de principiante em outro local. O que deveria ser provisório tornara-se definitivo: o tempo já não era em dias mas, em anos... e, praticamente, mais 24 anos traduziram-se em luta!
A vida lhe dera uma nova e verdadeira família: um grupo de pessoas autodenominadas “dinossauros”. Alguns partiram em busca de outros sonhos ou dimensões!
Naquele momento, ela se dera conta de que a sua vida também passara: foram anos e mais anos, sem ter tempo de parar para admirar uma flor, o amanhecer ou entardecer!
Depois de exatos 34 anos de luta, estava fora de combate: o suficiente para buscar nova realidade: muitos trilharam este caminho... O preço de ter se dedicado tanto em campo e de ter estado distante das coisas de que mais gostava: estava diante do implacável espelho do tempo, sem chance para remorsos...
A vida nos dá amigos e temos os amigos que escolhemos estar com eles, meditava!
Para uma guerreira que dera tudo de si para fazer a diferença e o melhor em campo, e agora, ter todo o tempo do mundo para cuidar de si, da família, dos amigos e de sua própria vida, era novidade: sensação de portas abertas de uma gaiola! Sim! Hora de ser senhora da sua vida, do tempo e sem hora para mais nada! Somente o seu coração sabia a que custo!
O tempo passa rápido e a vida se esvai tal qual a água pelos dedos, pensava! Hora de reunir a todos em um só grande grupo!
Sabia, tal qual no jogo, tudo poderia mudar e não haveria tempo para voltar ou reconstruir-se! O tempo de guerra física terminara! No horizonte, despontava nova batalha e, decerto, haveria espaço somente para a felicidade!
Experienciaria o salão branco e riacho cristalino: cruzá-lo sem se molhar, levitando: sentar-se na cadeira azul do outro lado. Vencer-se para sagrar-se vencedora... o maior inimigo, estava dentro de si. O passo exigia coragem, leveza, pureza além de bondade e de amor! Ao sentar-se ali, resgataria suas emoções! Meditando, poderia ler a mente das pessoas, dos objetos! Nada a surpreenderia: já estiveram juntos em outros campos! Tudo agora, conscientemente, trabalhado na dimensão espiritual!
A guerreira agradecera as adversidades: sentia que não vivera em vão: já não era mais uma batalha de tempo e espaço; era uma luta interna, reflexiva, plena de gritantes silêncios, do amor pelo AMOR!

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

domingo, 21 de abril de 2019

UMA SURPRESA PARA DONA MARILENE - CLAUDETE ROSENO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Era seu aniversário de 56 anos. A campainha tocou e, à porta, uma boneca reborn, que a muito sonhara, mas nunca pode comprar. Em seguida, os filhos e netos entraram cantando parabéns! Na caixa, uma cartinha que a fez marejar os olhos: “Querida Dona Marilene, a senhora ainda não sabe quem te escreve, mas já a observo a tempos. Eu sei que tu criaste muitos filhos e, mesmo diante das dificuldades, nada lhes faltou. É que quando pensamos em doar um bebê, preocupamo-nos que seja a uma pessoa idônea. Pelo que vi, sei que serás a melhor mãe que ela poderia ter. Para ela, não precisarás ficar os 9 meses de gestação, bordando o enxoval para estar apresentável ao nascer. Mas eu sei que se ela precisar de remédios caros, e tu não puderes comprar, andarás a pé, dia após dia, pedindo nas farmácias até que alguém se compadeça. Eu sei também que se ela estiver com dor e o remédio custar a funcionar, colocarás uma rede acima da tua cama e mesmo cansada, irás embalá-la até que a dor passe. E se ela tiver chagas no corpo, tu cuidarás de cada ferida, até que se cure. Todas as noites, antes de dormir irás olhá-la e a cobrirás. Tu cantarás sempre que estiveres triste, para ela não perceber. Tu a ensinarás a orar. Se ela fizer xixi na escola por vergonha de pedir à professora e não quiser voltar lá; mesmo com o dinheiro escasso, tu comprarás uvas para convencê-la a não desistir dos estudos. Quando ela não tiver com quem brincar, tu deixarás um pouco os afazeres domésticos e brincarás com ela. E também, se preciso for, tu passarás a noite em frente a uma escola para garantir-lhe a vaga. Dirás a ela que o estudo é um tesouro que ninguém pode roubar. Tu estarás nos eventos da escola, apesar de trabalhar em até 03 lugares distintos. Juntarás dinheiro o ano todo para comprar algo no dia das crianças ou natal, e mesmo esperando a promoção pós-data, recebidos sob festa! Teu coração estará alegre diante da alegria dela. Teu sorriso estará sempre vivo na mente dela. Quando ela crescer, lembrará com saudade do cheiro dos lençóis e da casa, limpos por você à noite. Ela lembrará também dos passeios de ônibus por falta de dinheiro.
Como no filme “a vida é bela” você colorirá a vida dela de um jeito, para ela ser otimista diante das dificuldades e que aprenda que a vida pode ser bela a despeito das restrições. Ela sorrirá sozinha quando lembrar as algazarras quando você lavar a casa. E lembrará das vezes de brincar com os irmãos num tambor cheio de água, vendo a Senhora passar carregando tijolos, telhas e cimento pra construir o doce lar da família. E ao final do dia, lavar toda a louça, arrumar a casa e preparar a refeição do dia seguinte para todos. Se ela quiser, aprenderá muito com a senhora e guardará as melhores lembranças de uma infância singela e cheia de zelo e amor. Tu a corrigirás fazendo-a devolver objetos de outrem. Isso será importante para a sua formação cidadã. Só lhe alerto uma coisa: Se ela não quiser, a sua influência e toda a sua dedicação não determinará o jeito dela ser. Quando crescer, ela será um ser independente e fará suas próprias escolhas, então não te culpes por nada, pois Deus é testemunha de que você, com os poucos recursos, inclusive de conhecimentos e experiências, pois foi mãe bem jovem, fez além do que muitas seriam capazes.
Obrigado por tudo o que fizeste por nós!
Te amamos demais!
De suas filhas: Cléa e Claudete”

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

sábado, 20 de abril de 2019

OITAVA DEMÊNCIA (excerto) - JOÃO DORDIO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Os poetas nascem e morrem sem aprenderem a dizer adeus...
porque é sempre um até já. E isso já eu próprio deveria saber mesmo
sem ter conseguido alguma vez perceber... que é sempre um até já
para antes, para agora e para depois! Já deveria saber mesmo sem
aprender por outras vidas que é sempre um até já... e é e será sempre e
sempre assim foi... pois haverá sempre uma nova vida, reencarnação,
momento, recordação... onde tudo irá recomeçar sem memórias, sem
dor, mas com mais aprendizagens...
Não se dirá nunca adeus quando uma alma parte da vida de um
poeta porque, se de nós parte outra alma, sem uma asa pássaro
algum poderá voar...
É por isso que os poetas não dizem adeus. Nunca aprenderam
nem nunca aprenderão! Porque mesmo voando por dentro, também
eles caem sem essa outra asa.
No dia em que me devolver por momentos à normalmente, vou
comprar asas suplentes e manuais de adeus! Para acabar de vez com
isto tudo! Duvido que sirvam para alguma coisa, mas nem a eles
conseguirei também dizer adeus...
Porque levo tempo a morrer...

EM - A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS - JOÃO DORDIO - IN-FINITA

sexta-feira, 19 de abril de 2019

FUI EU! FUI EU! FUI EU! (OU CLICHÊS E CONTEXTO) - CATITA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

[23h] [eles]
– Eu devia te colocar pra fora de casa hoje! Mas eu vou te dar uma chance: quem sabe uma noite no sofá refresca a sua memória?
– Mas eu...
Blam! Bate forte a porta do quarto.
.............................
– Eu juro que não sei como isso aconteceu. Eu não fiz nada. Você é o único amor da minha vida. Eu jamais te traí, nem te trairia, ainda mais agora, que estamos tão bem: casa nova, emprego novo...
.............................
[19h30] [ela]
– Ei, o que é isso? (desatando-se bruscamente do abraço). Não acredito! Quem é ela? Que cara de pau! Como você pôde fazer isso com a gente? E nem tentou esconder. Queria mesmo que eu pegasse? É isso? Nossa história termina assim, nesse descaramento?
.............................
[14h] [um]
– Aí, hein, cara?! Gostei de ver! O amor se espalha no ar! Pra quê vergonha, né, não?!
– ???
– Só não vai perder totalmente a compostura, viu? Conselho de amigo: você é novo no emprego, não exagera na descontração.
– Mas, como assim? Sobre o que você...
– Sem crise, cara! Tô julgando não. É só um toque. Valeu?! Fui!
– ???
.............................
[09h] [ele]
Por que será que elas estão agindo assim? Essas risadinhas, alguns olhares duros, questionadores, outros parecem... insinuantes! Não, é loucura minha. Mas, e eles? Mal os conheço, por que esse olhar tão cúmplice? Droga. E como é que faz essa planilha mesmo?
.............................
[06h40] [eu]
“Próxima estação Sé. Acesso à Linha 1 – Azul. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.”
Qualquer comparação que se faça – lata de sardinha, pau de arara, estufa de granja, carro de boi (sem lirismo, Rosa!) - é válida, mas insuficiente. Insuportável? E como conseguimos passar por isso todos os dias? Não conseguimos: estamos submetidos aos empurrões, cotoveladas, pisões, apertos, calor, capacidade máxima de lotação, velocidade reduzida, maior tempo de parada. Todos os dias. Às caras feias, aos xingamentos, às (quase) brigas, à falta de educação. Todos os dias.
Mas hoje foi muito pior. Praticamente sem tocar os pés no chão e sem alcançar barra de apoio horizontal ou vertical, quando o mar de gente irrompeu, fui lançada com tal violência que, por milésimos de segundos, senti-me voando... direto a um colarinho azul-celeste impecavelmente engomado. Ei, moço! Ele nem me ouviu.
E lá se foi, sabe Deus para onde, meu beijo involuntário no dia de estréia do vermelho terroso...

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

quinta-feira, 18 de abril de 2019

IN-FINITA APRESENTA... POESILINA, DE PALMIRA HEINE


Conheçam alguns dos aforismos que a autora PALMIRA HEINE nos oferece, neste livro, em jeito de medicamento terapêutico. 
Podem saber mais da autora neste link 

Quando sou noite, visto-me de estrelas

Eu tenho urgência de sonhos e amores

Das pedras na estrada, escada.

E de noite em mim, um verso teimoso amanheceu

Escrevi novos poemas nas trilhas dos meus labirintos

Do chão juntei meus pedaços e fiz mosaico de mim

Bom é mergulhar no fundo de alguém que se quer mar

Amar é correnteza e não corrente

A saudade é um sofá vazio no meio da sala

Redomas não me definem, sou verso e rima livre

Por mais que a gente duvide, só o amor merece revide

O inverno me ensinou que a primavera sempre vem

BIOGRAFIA

Palmira Heine é escritora, professora universitária, poetisa. Além de uma vasta obra acadêmica, é autora de diversos livros infantis e de poesia. Possui textos, poemas e contos publicados em diversas antologias nacionais e internacionais, sendo também organizadora da Antologia Contos de Fadas Contemporâneos e Gotas Poéticas, da Darda Editora. É membro da Confraria Poética Feminina, do Coletivo de autoras de literatura infantil e infanto-juvenil da Bahia. Seus livros podem ser encontrados em: https://asasdaleitura.loja2.com.br/