É um textão absurdo que fala sobre relações que trabalho há
tempos: Cinema e Educação. Narrativa de imagens e representação social.
"Os filhos esquecidos da educação"
No Brasil, a lei sempre pode justificar os meios e os
fins. Para fazer e para não fazer. Para desdizer ou maldizer. Ouço que a lei
existe em todo o mundo, em todos os Estados – de direitos ou exceção. Por isso
sempre me questiono sobre a verdade. Lei e verdade andam desde sempre juntas,
para o bem ou para o mal. E será que vale a pena discutirmos o que é a verdade
hoje? Será que estamos preparados para esta discussão ou será que estamos
dançando no escuro, como se ainda estivéssemos na Caverna de Platão à espera de
alguma luz?
Na Grécia Antiga, era a mitologia que explicava os
acontecimentos através de narrativas heroicas. Aquiles e Odisseu são heróis
coletivos e fundadores. O que mais importava naquele tempo era a narrativa,
porque por ela se conhecia os homens. Pela narrativa, chegávamos à fundação dos
povos. Pela narrativa, um povo dizimava o outro e fundava um novo princípio. No
poema épico, Aquiles se banha de sangue e seu elmo simboliza a força contra o
inimigo, Agamenon. Estamos diante da Ilíada, uma narrativa sangrenta de combate
e terror, de vida e morte. Sempre me apavoro quando leio a Ilíada e nunca vi um
filme que pudesse dar conta da grandiosidade de Homero naquela narrativa de
bravura e força. Também me apavoro quando leio o Rei Lear, de Shakespeare.
São narrativas em que a verdade se diluí na ficção, na
arte e, mesmo assim, nos coloca diante das nossas ruínas mais profundas ou
diante das nossas estranhezas humanas mais inquietantes, e nada é mais
verdadeiro que a ficção do poder para narrar a verdade sobre o poder e a
vontade de poder. O que parece diametralmente oposto e paradoxal se une nas
pontas do contorno de mundo como “aletheia”, que significa “o não esquecimento”
ou, para muitos, a busca da verdade.
Somente com o surgimento da filosofia, a verdade passa
ser o centro de uma nova narrativa de mundo. “No início, era o verbo”. Verdade
e verbo se confundem nessa nova narrativa. O peso da palavra como verdade
parece então relembrar a relação de irmandade entre Zeus e Hades, irmãos e
deuses, o primeiro da Origem, o segundo, dos Infernos. Novamente a dicotomia
cede, não por vontade, espaço para o ambíguo do homem. O que é verdade? Ela
existe sem a contaminação do não-ser-verdade ou do parecer-verdade ou
até-que-se-crie-uma-outra-verdade?
Para os pré-socráticos, ou seja, antes de Sócrates e de
sua maiêutica, ou antes de um pensamento que nos chega até os dias de hoje, a
transformação era o que regia o fluxo da narrativa. Quando Heráclito diz que a
única coisa certa é o devir, é a mudança, ele abre o caminho do pensamento para
o plenamente humano. A narrativa segue esse fluxo entre a vida e a morte. Tudo
que nasce um dia deve morrer. Nada é imutável.
No século XX, ou muito tempo depois de Heráclito, Antônio
Gramsci vai dizer que “se o velho morre e o novo não nasce, neste interregno
ocorrem os fenômenos mórbidos mais diversos”. O que foi o século XX? O que se
tem se tornado o século XXI? Tempos de dissolução da verdade e do verbo, do
questionamento da própria ideia de linguagem enquanto verdade. O Rei Lear está
novamente vivo e morto, e a cobiça e a intriga entre suas duas filhas provocam
a sua derrocada, sua destruição. Os tempos do século XX são incertos. Não há
mais lugar para as certezas definitivas. A narrativa se fragmenta. Está em
pedaços.
Aqui, neste cruzamento da minha narrativa, é que entra O
filho de Saul, os filhos de ninguém, os filhos de Antígona, quando me fazem
pensar sobre o lugar do discurso e da retórica na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação. Quando me fazem pensar no lugar do signo como verdade na lei ou ainda
no lugar da verdade como lei. Não à toa, Nietzsche se debruçou sobre este tema
e não à toa foi citado numa verborragia insana de homens que se colocam em
pedestais de deuses e são mitificados por boa parte da população brasileira
atualmente. Nietzsche, que foi um crítico severo do conceito de verdade,
questionou os seus determinismos ou quem falasse ou praticasse o poder em nome
dela.
Por isso mesmo a palavra não deveria se sobrepor à coisa
humana. Na LDB, a sigla EJA (Educação de Jovens e Adultos) aparece como uma
abreviatura e um símbolo linguístico de um determinado segmento e não de outro,
que é substancialmente composto apenas por jovens e adultos. Ensino básico e
ensino superior se separam dicotomicamente também pela palavra. Por isso quando
falamos ou escrevemos sobre a EJA, ainda não estamos falamos sobre o universo
dos cotistas, ainda não estamos falamos sobre a formação do novo docente
brasileiro, nem conseguimos falar sobre a diversidade, a heterogeneidade e de
toda uma rede complexa de questões que ficam ali, barradas na porta pela
dicotomia do signo, porque precisamos antes falar da morte da EJA.
Outra questão é que a juventude é hoje um nó naquilo que
muitos desejariam só “EA”, ou Educação de Adultos. Se eu tenho o ECA como
estatuto e defino a partir de uma região mórbida – e não mais emancipatória –
de que o jovem de 15 anos deve passar a estudar no turno da noite, e eu não sou
mais Aquiles, nem Rei Lear, eu me torno a morbidez de uma gestão autoritária e
excludente que habita muitas escolas. Há um sujeito que conduz esse predicado
como regra. E esse sujeito só se torna abstrato na narrativa, quando
culpabilizo o sistema em vez de nomear os gestores que agem morbidamente em
nome da lei.
Trabalhei por anos diretamente com o alunos do Centros de
Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad-Degase) e sempre me
perguntava: “de quem sãos esses filhos? Por que me sinto tão vazia e impotente?
Por que não consigo trazê-los pra mim?”. Eram tantas as camadas de exclusão,
que eu, ali, professora de língua portuguesa, me questionava sobre o meu
próprio lugar no mundo e sobre aquele dever e devir.
Foi assim que, pensando nessas questões trazidas
primeiramente pela sala de aula, fui assistir O Filho de Saul, um filme
belíssimo em sua dureza de linguagens e na própria dureza que nos seca a
língua. É um filme quase sem palavras, porque elas não dariam conta da vida e
da morte que permeia a narrativa de Saul, que faz parte dos SonderKommandos,
judeus que ficavam responsáveis pela limpeza da câmara de gás em campos de
concentração nazista. Saul está em Auschwitz e, um dia, entre mortos que chegam
em volume, encontra seu filho – ou quem poderia ser seu filho. Assim como uma
Antígona, em sua tragédia ou na nossa tragédia humana, Saul corre contra o
tempo e a morte para realizar o rito fúnebre de enterrar o corpo desse filho –
ou o seu próprio corpo ou ainda, o corpo da narrativa.
Lembrei de um aluno muito jovem, de 16 anos, já com
passagem pela polícia. Sandro era o nome dele. Sandro era meu aluno da EJA,
sexta série naquela época. Um dia, Sandro desapareceu, desapareceu da escola,
despareceu da mãe-Antígona, desapareceu de seu território. Eliane era o nome da
mãe de Sandro que ficou dias, meses, procurando o corpo do filho para enterrar
na sua tragédia única e de muitos. Ninguém se interessou o bastante. Um dia,
Eliane também desapareceu, deixou de ir à escola, e eu só posso sentir muito
por não ter um final para contar.
Mas eu posso falar da sensação que tive com o final do
filme e da saga de Saul. Um vazio, uma sensação de afastamento e dor ao mesmo
tempo. Os filhos de Saul ou o filho de Eliane, por mais que eu me importe, eles
não são meus filhos. Eles são filhos de quem? E a palavra e a lei, por mais
emancipatórias que possam ser, não dão conta de desfazer ou me absolver dessa
verdade. Por mais que eu me engajasse como professora do Sandro, não poderia e
não pude mudar aquele desfecho trágico. Mas, ainda assim, eu posso e nós
podemos pensar sobre os filhos de Eliane, os filhos de ninguém, os filhos de
Saul, os filhos dos outros – e quem sabe, podemos até mudar algo, como uma
palavra, um discurso que caminhe no fluxo da nossa própria narrativa na
contra-corrente da verdade cínica, da verdade abusiva, da pós-verdade que reluz
como ouro.
Publicado na ANF/2017
mini-Biografia: Patricia Porto
Graduada em Literaturas Brasileira e
Portuguesa, Doutora em Políticas Públicas e Educação, professora e poeta,
publicou a obra acadêmica "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte
Docente na Escolarização da Literatura” e os livros de poesia "Sobre
Pétalas e Preces" e "Diário de Viagem para Espantalhos e
Andarilhos". Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior,
integra o coletivo Mulherio das Letras e é colaboradora do portal da ANF
(Agência de Notícias das Favelas).
Te saúdo grande Mulher Guerreira!Te Admiro, te Respeito e te Gosto muito!
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