terça-feira, 2 de janeiro de 2018

FALA AÍ BRASIL... PATRÍCIA PORTO (XXIII)

Seu vizinho, pai de todos, fura bolos

Ser filha bastarda da classe média alta maranhense me deu um ganho extra - logo de entrada: saber-se inconveniente na vida. E este não ter lugar me deu um lugar ímpar no mundo. Ter sido pobre por escárnio da classe que me pariu foi de um salto extraordinário de experiência. Algo raro. Ter trânsito entre mundos paralelos. Porque são mundos paralelos e se ilude quem se desconhece neste quinhão, quem espera caridade, quem confia seus dedos sem ter anéis. Daí lembro que aos dez anos fui convidada para um chá por minha avó, uma mulher fina, mãe de seis médicos bem formados, aquele orgulho de classe, entre eles - meu pai, o gastro. Eu era neta bastarda de uma pedagoga que discursava sobre Anísio Teixeira. A vida é realmente cíclica no recalque. Mas o chá não. Foi único, breve e inesquecível. Primeiro porque ela me fez entrar pela porta dos fundos e no quintal ficava a arena de rinha de meu pai - com os galos aprisionados, agitados, cucuricando... Não senti medo. Senti mais pena dos bichos, mas entendi a lição. Segundo porque o outro ato da peça foi ainda mais digno de impressionar. Ela me serviu chá num jogo de porcelana limoges. Colocou cubos de açúcar na minha xícara enquanto me olhava entre asco e cinismo. Peguei a xícara com as duas mãos sem tirar os olhos dela, levei até perto da boca. Ela se assustou porque sabia que eu me queimava de propósito. Bem na altura da boca, o líquido quente e pálido fazia círculos numa boa metáfora familiar. Então deixei cair solenemente sobre a mesa a porcelana fina feito minha avó. Um estrago de peças quebradas e água quente respigando no colo dela. Cacos de chá pra todo lado. Ela levantou terrivelmente irritada, sem máscaras, e eu fugi pelo quintal, correndo entre os galos. Daquele dia em diante desenvolvi gastrite.


Mais um teaser do meu próximo livro: "Que se come frio". E que venha 2018!


Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso