domingo, 8 de outubro de 2017

FALA ÁFRICA... MACVILDO PEDRO BONDE


BOLSOS ROTOS

Ao Álvaro Taruma

Maputo, 10 de Agosto de 2017

Já passavam das 17h. O miúdo nas suas travessuras não parava de seguir meus passos como quem percebe que o pai vai a gandaia. Entre o sofá e a varanda simulava algumas fugas, mas nada. O puto atento agarrava as minhas calças.

- Assista teus bonecos, repreendi-o. Mas, o miúdo dono de si continuou firme.

– Não quero, pai! A minha alma insatisfeita não via graça nos bonecos do Disney Júnior. A campainha tocou. Abri a porta. Com a sagacidade de speed Gonzalez galguei as escadas como quem apara o silêncio no deserto.

As ruas pareciam desertas e o carro demorava a eternidade. Conversava comigo: já passa das 18h e a malta pode estar para abandonar o auditório, num dia em que havia noutra extremidade da 25 de Setembro a reedição de contos do Dau.

Na paragem notei que o transporte estava menos cheio que o costume. Entre olhares e silêncios segui a viagem. Já na entrada questionei ao guarda.

- Os jovens ainda estão no auditório? - Boa noite, como está? O primeiro segurança não sabia do evento e entrou para perguntar o colega que estava na galeria apreciando algumas obras.

- Pode subir, eles estão no auditório, respondeu. Lá estavam os rapazes a cavaquear. Entrei numa altura em que o autor do livro infanto-juvenil, Mauro Brito, tinha a palavra.

A sala recordava aqueles teatros gregos. Os seus olhos brilhavam detrás da armadura dos óculos com graduação só para génios.

- Não sou organizado, disse Taruma. Esta foram das primeiras palavras que busquei do meu atraso. Na sua subtileza, foi descrevendo seu processo criativo distanciando-se, por vezes, daqueles conselhos que pululam dos grandes mestres de outras latitudes.

- Não consigo escrever um livro e dizer que acabou. Amanhã, vou iniciar um outro. Ando atrás de uma ideia. Não tenho como parar de escrever, atirou o rapaz da cartografia.

Chegar tarde é uma seca. Na verdade, havia me esquecido do tema. Eu ali, quase sem ideias, a procurar o fio da meada, aconcheguei-me ao Duarte. Aquele rapaz cozinhado pela escola francesa, que vive deambulando pelas artérias com o seu bloco.

Aos poucos fui percorrendo a conversa mediada pelo Pila. A malta estava ali para conhecer o poeta e seus demónios. Numa daquelas revelações que só acontecem aos inconformados, o poeta disse que abandonara o curso de linguística e literatura. Aliás, na época o curso foi repartido em dois. Participou em duas aulas e deu gás, como se diz nas ruas.

- Os autores roubam ideias de outros, continuou o poeta na sua aula, sendo interrompido caso alguém quisesse rebater ou contar a sua trajectória nas letras.

No banco de trás como alguém que está pronto para uma grande viagem sem destino, expus a minha inquietação perante o dilema da minha insónia e os escritos com recurso às novas plataformas.

- Tive essa experiência entre Maputo e Catembe, afirmou Taruma, acrescentando que não gosta de registo em papel porque as correcções que vão surgindo trucidam o sentido que pretende com o texto.

Dentro da sala o frio não nos roçava os beiços, a língua, e os dentes não conheciam a cor da fome. Entre risos e inquietações andamos a volta dos nossos mestres, da intertextualidade, da forma como captamos as imagens num tempo de muito ócio.

Terminado o tormento, sacudimos a Karl Marx em conversa fiada porque os bolsos estavam rotos para umas cervejas no Ó Manel.

- Hoje estou mal, disse. O Mauro que abraçou o celular durante a caminhada à Ronil, tinha cem paus, Taruma os seus míseros 85 meticais na conta bancária. O Duarte absteve-se e o Munguambe ainda esboçou o envio por m-pesa enquanto seguíamos, sorridentes, o itinerário.


De súbito uma imagem deixou-nos estupefactos. Estava além um miúdo de rua sentando nas suas trouxas, assistindo a publicidade de um cachorro em tela de alta definição. Acho que foram os minutos mais cruéis da vida do rapaz, no meu entender. Como é que um Cão pode ter melhor tratamento que um ser humano?

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