segunda-feira, 14 de agosto de 2017

FALA AÍ BRASIL... LÚCIO MUSTAFÁ

EPOPÉIA VERDE E AMARELADA de um singelo homem-eterno-menino.

Quando a gente nasce, se depara com o mundo nos sorrindo, acha tudo lindo, um amor in-findo se aprochega do nosso âmago, lindas pessoas, tão amorosas a nos ensinar a arte da prosa; depois é flor, depois é rosa e margarida, depois é céu, é nuvem é vida, depois é alegria de ser carregado no colo, depois é beijos, depois abraço, depois nosso sentimento é envolvido num doce laço de fita e é presente é aniversário, e é escola é bê-a-bá, é São João e é Carnaval e é Natal e é alegria e é fantasia e é religião, é um Deus no céu e um anjinho branco com duas asas lindas e grades para nos proteger. E chega você e me dá o peito e é um deleite e lá tem leite e depois papinha na colherinha eu vou tomando na cadeirinha e até chupeta me dão na boca que coisa louca de tão gostosa assim é a vida que a gente acha quando eclode da mãe da gente. A coisa vai se desenrolando e vão me embalando na cadeirinha e o eu no bercinho que é cheirosinho, cheira a talquinho e a roupinha é tão fofinha que chega fico todo dengoso, todo bobinho. A mim doaram uma babá de nome Laurita, mulher bonita, acarinhadora, aquela pessoa que me namorava e eu gostava do colo dela e os peitos delas eram tão cheirosos e os alimentos que ela me dava eram tão gostosos. E eu fui crescendo, me deliciando com aquela vida feita de amores, e até as dores eram passageiras, pois me parecia que Deus existia e de mim cuidava e minhas feridas ele sarava num belo passe de mágica. A vida era, então só comédia, não era triste, não era trágica, só existia, no meu horizonte perspectivas de seres mágicos, de mulheres divas, de festas encantos. E até meus prantos eram passageiros, sempre consolados por belas palavras, umas inspiradas patro-maternas, outras retiradas das escrituras, e as criaturas que a mim cercavam só de amor tratavam e as cores do arco-iris logo me enfeitiçaram e se encontraram nos gizes de cera e na merendeira na que eu levava para a escolinha minha merendinha. E cantar, cantava, e dançar, dançava e até recitava tanta poesia que eu decorava de uma coletânea em forma de livro que tinha me sido dada pro uma amada tia. Ai! Que tempos lindos, quanta lindas coisas, quantas doces cenas, quantas gentes boas, todas me cercavam e me prometiam que a vida ia ser somente bela, e minha bandeira, verde e amarela era asteada às segundas feiras no pátio da escola e eu cantava o hino e eu era menino e até o noivo da quadrilha eu fui, e ganhei o prêmio de melhor aluno, e em um segundo me vi nas estrelas, quantas coisas belas, quanta lembrança boa... Mas o tempo voa e daquele piso, feito só de flores, feito só de amores, vai rolando aqui e acolá algumas rachaduras e alguns vazamentos fazendo jorrar uma água escura... E aparecem homens, todos engravatados, junto a seus soldados, todos bem armados, com seu ternos bem engomados, nada amarrotados encenando um filme de guerra, virou minha terra, na vida real. Um odor nauseabundo em fitas circula naquele ar puro que até então eu respirava. E dava a sensação que nem era verdade, que fosse só um sonho mal, só um pesadelo, daqueles que faz o pêlo da gente eriçar. E a partir daí foi-se ouvindo gritos, notícias de morte, de gente forte perseguindo meninos magricelas, de celas de cadeia, de tanta coisa feia que foi sendo misturada no meu mundo lindo, de desconfianças na minha bonança, de agressividades e maldade, enfim e eu fui aos poucos sendo informado que o país estava todo dominado por um pelotão de homens fardados, ditatorizado e que o jeito era abaixar os olhos e ficar calado pra não, de repente, terminar implicado em alguma trama de uma intriga intrincada que eles costumavam colocar em pé. Aí me disseram que tinha sido golpe, aí me disseram que tinha sido um monstro da lagoa que havia emergido e andava por ali engolindo toda gente boa que àquela maldade fosse resistindo. O pior foi que quiseram me engajar, me rasparam a cabeça estilo Jack Demi, me tentaram incutir o amor à uniformização, à farda, a de repente virar um guarda com a arma na mão ou da artilharia, manobrando um canhão. Ah não, ah não, ah não! Isso não dá pra mim não. Foi aí que eu me fiz artista, fui pegar papel de revista pra fazer colagem e tomei coragem e dispensei a sociedade dúbia e fui pro acampamento hippie transar à luz das estrelas e ao som do rock in roll. Foi aí que eu rejeitei aquela condição contraditória, aquela glória abusada, aquele tudo que era nada, aquela traição das promessas de beleza que me tinham feito no leito natal. Foi aí que eu fui dando um jeito de me afastar de quem queria me enquadrar e foi aí também que eu percebi que um outro mundo seria possível mas se faz impossível pois nem todos são como eu e muitos aceitam ver a beleza da infância se desvanecer. Mas mesmo assim eu continuo o mesmo menino que só gosta de denguinho, que só gosta de carinho, de céu azul e de beijinho, que se afasta do que não presta que gosta de desenhar uma pomba da paz na testa, que gosta de ser uma pessoa boa e que voa nas azas do vento, só com o pensamento quando usa aquele bê-a-ba, aprendido na infância, aquela capacidade de prosa poética, para lançar uma mensagem estética e pedir a gentileza das pessoas que se tornem de más em boas, para fazerem o mundo prestar, só na paz e no amor, no mais amor por favor, sem fardas, sem gritos, sem malvados mitos, sem estouro de bombas, sem apitos, sem globos nos fazendo de bobos, sem Robertos Marinhos, só amores, só carinhos, só carinhos, só carinhos...

mini-biografia: Lúcio Mustafá

Nascido em Barbacena (MG) em 20 de maio de 1961, passou a infância em Brasília e a juventude e vida adulta na Cidade do Recife. Viveu entre hippies, mendigos, favelados, numa fase na qual aderiu à teologia da libertação tendo participado do grupo de Don Helder Câmara. Viveu em Roma de 1994 aos albores do século XXI. Poeta, escritor de contos, de crônicas, artista plástico, filólogo pelo Institutum Altioris Latinitatis Romae e filósofo pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Lúcio Mustafá, que foi um dos fundadores do Movimento dos Realistas Urbanos, é criador da filosofia Panamorista, que se propõe a corrigir um detalhe esquecido por todas as outras filosofias que vieram antes dele, que é o detalhe de mostrar a possibilidade de Amor Incondicional do Ser Humano consigo mesmo e com toda a natureza. As influências de Lúcio Mustafá são várias e vão desde da literatura regionalista nordestina, às teses do Círculo Linguístico de Praga, à literatura e arte italianas.


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