terça-feira, 4 de julho de 2017

FALA AÍ BRASIL... PATRÍCIA PORTO



Não me lembro de ser uma mulher comum sem o rude exercício de aprender as lições da vida - ali - cotidianamente com "a faca nos dentes". Com horas pequenas, dias efêmeros dentro de outros longos e limitadores dias de pouca estima. Aprendi a viver? Inevitável aprender a viver e fazer da vida algo transformador quando se tem a pedra como lição e companhia. Com o passar dos anos e da convivência aprende-se muito sobre as pedras. Aprende-se sobre o afeto que nos foi negado, sobre as falhas do trajeto, sobre as desigualdades dos caminhos mais do que das origens. Aprende-se sobre a condição de ser, a situação de ser, de ser quando se está realmente sendo. E ser mulher, a mulher do dia, a mulher, como diz Cora Coralina: “a minha irmãzinha”, requer a sabedoria das pedras. Preparar a vida do amanhã, aninhar no braço sonhos destruídos, abraçar causas desperdiçadas, amar os retalhos sem concessões e na solidão que não é bonita, requer desdobramentos do corpo e da alma.

Eu também sei o que é ter asas e ser impedida de voar. Ou ser daquele tipo que não chia nem canta. Isso talvez seja das violências a que mais nos atinja, a violência silenciosa das grades construídas com a ajuda de nossas próprias mãos, a construção pelo desperdício do raro, pelo silêncio instalado entre o jantar e as coisas sujas que se amontoam nas pias da vida. No universo dos pequenos detalhes e das sutis delicadezas a alma de desdobrada pode tornar-se um vulto, uma sombra do que se é realmente. Presa na torre que a confunde entre a espera e o desejo de mudança, a mulher que veio das pedras, precisa ter a audácia de roubar a chave do seu fiel carcereiro para enfrentar o desafio da liberdade.

A mulher das pedras que se liberta de seguir um padrão rígido qualquer ou a grande expectativa do carcereiro, corre o risco de se tornar a flor sedenta de sol, a flor teimosa que nasce vertiginosamente entre as pedras, até porque belíssimas flores nascem de solos difíceis. Zelar pelos novos fios que nascem da vida, tecer mitologicamente a sua própria natureza recém-descoberta, fará dessa mulher a vasta existência entre tudo o que lhe foi negado de história e tudo que virá a ser projeto de futuro. A mulher que nasce entre a peleja e a beleza de sua sede de vida - quase um clichê, corre um risco imenso de despertar - incompleta, feliz.


mini-Biografia: Patrícia Porto

Graduada em Literaturas Brasileira e Portuguesa, Doutora em Políticas Públicas e Educação, professora e poeta, publicou a obra acadêmica "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da Literatura” e os livros de poesia "Sobre Pétalas e Preces" e "Diário de Viagem para Espantalhos e Andarilhos". Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior, integra o coletivo Mulherio das Letras e é colaboradora do portal da ANF (Agência de Notícias das Favelas).


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