sexta-feira, 7 de julho de 2017

DAMOS VOZ A... GEORGINA CAÇADOR



DIFERENÇAS
   
Vou chamar-lhe Diniz. Como o Rei sepultado em Odivelas. Ou Afonso, como o primeiro Rei português e o meu tio por afinidade, ou o que foi de Portugal e dos Algarves. Como se um e outro, não fosse tudo e a mesma coisa.
   
Hoje, o suposto estado islâmico quer o Al- Andaluz com sede em Córdoba e isso está para o mundo, como a vida que deram ao Diniz, ou Afonso e ele não foi capaz de mudar. Nos meus 14, 15, 16 anos, convivi e fomos amigos. 
   
Eu vivia na charneca, mas o seu lugar era na charneca profunda. De manhã cedo a sua ânsia de viver, ter uma vida melhor e à sua medida, fazia-o levantar antes das 6 da manhã. Andava vários km de bicicleta, para apanhar a camioneta, no meu lugar, que passava às 7,10 da manhã. 
     
Fizesse chuva, gelo, ou um vendaval medonho, o caminho fazia-se todos os dias, pois todos os dias eram de escola. 
   
Tinha uma alma sensível ligada ao belo e à arte. Enquanto os outros jogavam à bola ou se atiravam aos namoricos, ele adorava ver as flores, as revistas, ouvir o canto dos pássaros na Primavera. Abominava as suas roupas, a que não tinha direito de escolha, compradas pela sua mãe. À homem.
   
Tinha um humor calmo e hilariante, uma língua afiada que não entrava muito no riso. Era mais de fazer rir e ver o efeito. E que efeito. O meu riso feio e alto ecoava pelas ruas e pelos caminhos. Não resistia às boas gargalhadas que a sua afiada língua provocava. Caramba, eu chorava a rir perante a sua passividade satírica. 
   
Por vezes percebia-se uma real preocupação. E não nos riamos. Pelo contrário. A sua mente realista fazia-nos ver os horizontes curtos que a sociedade nos estava a dar. O pai, dizia-lhe que não lhe pagava mais que o 11º ano. Universidade era para poucos e o 12º ano, só na capital do distrito. Muito longe de nós. Isso preocupava-o e falava amiúde algumas poucas palavras. Que nos faziam pensar a todos.
   
A vida acabou por nos separar. Soube muitos anos mais tarde, que de facto o pai não lhe pagou mais os estudos. Ficou no 11º ano. Com a vinda de tantos retornados das ex-colónias, nem todos os que chegavam, mas a maioria, ocuparam os postos disponíveis com os quais eu, ele e tantos outros contávamos. 
   
Os retornados eram pessoas muito bem preparadas e instruídas, tinham uma visão do mundo muito mais larga que a nossa. Eram preferidos até pelo estado, que em parte se sentia culpado pelo seu destino.
   
A nós restou o mesmo, o igual. O igual para ele eram as motosserras da charneca, nos cortes de lenha. A apanha das pinhas e a tiragem da cortiça. Trabalhos brutos, para o seu corpo franzino. Como convívio a taberna, a cerveja e uma certa brutalidade de palavras e atos. Foi uma tragédia. 
   
Era repudiado pelos outros, porque a sua sensibilidade pedia poesia, não asneiras, música e beleza, não as grosserias de quem o não entendia. Os tecidos belos e nobres eram muito mais apetecíveis que os pulloveres, calças castanhas e sapatões todo o terreno. Mal comparado. Era uma expressão muito usada por ele, mas que se adequa muito bem à circunstância. 
   
Ele era um narciso do campo, que foi colocado num jarro de barro bruto.
   
Reencontrei-o no cemitério. 
   
Um dia não suportou ter nascido mulher num corpo errado, ser apontado e rejeitado na sua essência. Comprou o prémio dos desgraçados e bebeu-o. 605 Forte. Quase instantâneo. Ali, aos meus pés estava ele. Olhava o seu rosto e lembrava o meu riso nascido das suas palavras e pensava ser mentira. 
   
Hoje ele poderia ter psicólogos, mudança de sexo e até casar. Teria uma vida normal. Mas viveu num tempo que não tinha portas nem janelas.
   
Às vezes ouço o preconceito e a ignorância subirem de tom e de forma, as palavras grosseiras a pairarem no ar. Mas ninguém me diga que Afonso ou Diniz, tanto faz, não era uma pessoa maravilhosa, linda, que ele não sofreu, ou que fez o que tinha que fazer. Porque isto diz-se, por quem nunca teve a felicidade de ter um amigo como ele, nem a tristeza de o saber morto. 
   
Preconceito mata. 
   
Quem lhe chamava nomes e o aviltava, continua ou não por aí. Come, bebe, vive, respira e nem sente culpa. Fez o que tinha que fazer. Como se a vida no seu todo fosse privilégio apenas de alguns e as diferenças só mereçam a foice, a ceifa, o não existir.
   
Nos dias quentinhos de Primavera, porque os de Inverno só traziam o frio e o encolhimento até das palavras, lembro-me das flores que ele gostava, das montras que mais via, dos cantos dos pássaros. Penso que eu saí da charneca e fui viver para Odivelas e nunca me adaptei, e que para ele teria talvez, sido a vida. Aos meus pés, estava o seu sorriso de mentira, sepultado num frasco de veneno que a sociedade lhe ofereceu e que ele bebeu até à última gota.

em - Vozes Portuguesas 1ª Antologia do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa - editora Literarte.

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