sábado, 27 de julho de 2013

FALA AÍ BRASIL... FLÁVIO MORGADO

Para grande honra deste blogue, o poeta Flávio Morgado, a quem agradeço antecipadamente, decidiu voltar a presentear-nos com a sua colaboração e, desta vez, dá-nos a conhecer, através do seu olhar crítico, um dos trabalhos do artista plástico Victor Mattina.

Persistido, o óbvio assusta


Antes de tudo, duas considerações.
A primeira é que não significa que um artista, seja de qual tempo for, está em plena compreensão dos mais variados desenvolvimentos intelectuais, espirituais e tecnológicos que estão ocorrendo. Escrever um texto que os coloque nesses termos talvez esteja mais próximo de uma crítica feita por um historiador da arte, o que não ocupo, e além do mais, os próprios historiadores têm prestado cada vez mais atenção às singularidades do que nas possíveis semelhanças. Creio que os artistas não tenham essa necessidade, têm seu próprio trabalho a fazer, pesquisas intuitivas a realizar. Suas tintas atingem o nosso discurso, são livres. E por isso perene.
A segunda é acerca da pintura figurativa. É importante que fique claro que o figurativo não tem a exclusividade sobre a afetação, sua comunicação não necessariamente é a mais direta. Não é um rosto exposto, com a sua riqueza de vigas e humanidades, que define nosso movimento de aproximação ao quadro. Lembremos apenas de Picasso, “Guernica” (1937): choramos com a geometria.
Dadas considerações, tentarei fazer com que me entendam melhor.
Estou aqui para falar da pintura de Victor Mattina, mais precisamente de seu quadro “Ibn Al-Shaykh Al-Libi”, o rosto do terrorista líbio.
Capturado no Paquistão e entregue aos americanos, o líbio foi torturado até o limite de inventar confissões, ligando o ataque do dia 11 de setembro de 2001 ao Iraque, e confessar-se pelo silêncio. Adquiriu vitiligo após as sessões de interrogatório e foi encontrado morto anos depois em uma cela na Líbia. Mattina o conheceu por notícias, como todos nós, seu rosto foi exposto em fotografias, como o de todos os outros terroristas que já vimos. O que fez foi se constranger, e como pintor, nos estender o constrangimento. Pintou exatamente o que vimos na fotografia.
O registro fotográfico já não nos basta? Por que levá-lo, exatamente igual, ao quadro? Ou por que não o traduziu em outra forma de expressão, talvez mais contemporânea, menos figurativa, mais abstrata?
Talvez porque ir às tintas não seja mesmo igual, ainda que mantenha os mesmos referenciais fotográficos. Talvez porque um quadro abrigue-se em nós em outro espaço que não o da fotografia jornalística. Talvez porque a abstração não seja exclusividade apenas das formas geométricas.
Percebam o diálogo que se estabelece entre a fotografia e a pintura, principalmente no que se refere ao seu lugar de fala. Imaginemos a tal fotografia na quarta página do jornal que lemos todos os dias. Agora imagine o mesmo rosto pintado e emoldurado em uma exposição, recebendo seu merecido destaque. De repente, ali, onde estamos muitas vezes para fugir dos jornais, ele reaparece: “Parece que você não me viu direito, não é?”, sua voz encorpa-se naquele lugar.
Estando ali, soa um afronte. E não é por sua técnica, sua nova interpretação, sua contemporaneidade. Não. O pintor parece usar a pintura apenas como suporte ao alarde. E talvez para isso fosse mesmo preciso manter a figura, recuperar nossa capacidade de se tocar pela figura, apenas abstraindo o espanto, inerente em qualquer banalidade. “Olha, é simples. É só isso que (não)vimos todos os dias.” Tal qual nos fosse necessário, por exemplo, expor um cacho de banana e vê-lo apodrecer por uma semana para vê-lo preso ao jugo da palavra morte. É apenas um cacho de fruta, está sempre conosco, sabemos que elas com o tempo apodrecem, mas ainda assim é necessário. Como são os que intuem nossas necessidades de espanto e silêncio. Que emolduram o não-dito. Perene e persistente.



Meu primeiro espanto suscitou um poema e referendou sua perenidade:


olhos de ouvir
 “Ibn Al-Shaykh Al-Libi” de Victor Mattina


nosso risco
pouco difere de uma fruta
que em mancha, borra
                            ferida,
                 marca a luta.

à mesa,
em tinta pústula
a morte pinta-se
             por dentro (de açúcar)
da indiferente banana

à tela, o pintor
em tinta-muda
colore
            o discurso

(aos nossos olhos de ouvir)


o silêncio desordena
                               o rosto
e acusa inocência
                              do pintado
em não reconhecer a morte
                              pelo cacho
e na palavra um capricho



- fora sempre confessado.



Flávio Morgado. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 2013.