sábado, 27 de abril de 2013

EU FALO DE... EXERCÍCIOS CRIATIVOS II


Como referi num artigo anterior, seja qual for o estilo de escrita, é fundamental que cada autor ganhe o hábito de exercitar a sua arte tendo em vista o melhoramento e evolução. Nesse artigo fiz referência a exercícios com forte componente de estímulo exterior ou sugestionamento. Hoje quero falar-vos de outros de carácter mais individualista e apetência criativa que, pela sua especificidade, permitem aos autores exercitarem-se vocabularmente.

Sendo, por natureza, considerados géneros menores da poesia, dois dos exercícios que vos quero falar hoje não são tão fechados e rígidos, bem pelo contrário, e acabam por ser mais acessíveis aos prosadores.

O primeiro, e talvez o menos desconhecido, é o acróstico. Nesta composição, o autor deve partir de uma ou mais palavras-chave (colocadas verticalmente) e desenvolver um texto coerente, como se tratasse de uma definição, em que cada verso começa por uma das letras da palavra ou palavras-chave.

Dou-vos um exemplo simples, sem grandes floreados técnicos:

A ssim
M orrem
O s
R omânticos

Este género de exercicio permite, no entanto, textos de maior complexidade como este meu poema de 2009:

DISCURSO III (2009)

D isposição prosaica de hostil engano
E mprego abusivo de ilusórios motes
U fana indiferença do sacro profano
S inónimos ocultos de outras sortes
 
E rradas pronuncias extra culturais
R uminações de palavras ignoradas
R efrear de ímpetos em tudo banais
A lienação por tentativas falhadas
 
T estemunhas de acções possíveis
A menizar da sublevação plebeia
M arginalizar o afamado problema
B eligerância entre seres passíveis
E stupro de valiosa e crente ideia
M etida na margem deste poema
 
Num patamar diferente mas também de grande utilidade estimulativa está o tautograma, composição poética cuja regra principal é que todo o texto seja composto de palavras iniciadas com a mesma letra. Exemplo:

 

A Ana acorda ansiosa
adora amoras azuladas
algumas, azedas, arrepiam
ainda assim atira-se
às amoras azuladas.
 
Sendo mais exigente pela limitação proposta, o tautograma é flexível e permite a utilização de artigos definidos, preposições e pronomes. Exemplo:

 
O Paulo precisa passar pelo portão que permite passear pelo prado. Passo a passo, pontapeia pedras, projecta pedrinhas, pula pedregulhos, pisa poças pondo os pés perfeitamente paralelos. Passeando pelos prados, Paulo, paulatinamente, percebe a presença de Pedro, parceiro preferido das patifarias. Que par!

 
Como podem verificar, este acaba por ser um exercício muito mais adaptável aos prosadores pela dificuldade rimática que encerra, embora não seja de todo impossível fazer um tautograma rimado. Já li textos lindíssimos escritos neste registo.

 
Por último quero fazer referência aos poemas de rima única cujo maior mestre foi Ruy Belo. Este grande nome da poesia portuguesa deixou algumas pérolas neste registo e, apesar da inexistência de regra rimática, fazia questão de utilizar apenas advérbios como rima. Tal como fiz com o acróstico, dou-vos um poema meu, de 2009, como exemplo:

 
EXERCÍCIO III (2009)
 
Quando as tropas de Junot chegam a Alpiarça
O capitão de Villepin junta-as na praça
E com o seu vozeirão feroz não disfarça
O quanto odeia os portugueses: - Que raça!
Nas ruas não há vivalma nem sinal da populaça
- Onde se meteu este povo? Onde anda a gentaça?
Seus olhos de águia estancaram numa vidraça
Onde se afilavam os rostos da mulheraça
Villepin dirigiu-se ao casebre de argamassa
Vislumbrou uma bela e encantadora louraça
E na sua voz de trovão perguntou: - Que se passa?
Ao seu sotaque carregado, a moça achou graça
E respondeu afoita. - Nada digo, faça o que faça!
O capitão enfurecido faz-lhe um gesto de ameaça
Ela não se intimida: - A nossa vida já é uma desgraça!
Villepin admira a coragem da menina “olhos de garça”
E pede gentilmente um pouco de pão, ela dá uma carcaça
- É tudo o que temos para dar, a comida é escassa!
Mas Villepin é um homem avisado e vê a fumaça
Ouve o crepitar da lareira e cheira a carne que assa
E sorrindo diz: - Ma Cherie, eu não tolero trapaça!
Ele sente que a moça desarma: - Não há por aí vinhaça?
Ela sorri e responde: - Só se vós beberdes pela cabaça!
Nesse instante ouviu-se um grito, tremenda arruaça
Villepin vê um soldado atrás de uma moça descalça
Como um predador atrás de uma presa que caça
Depressa a alcança e com seus fortes braços a enlaça
A moça tenta livrar-se do soldado de farta bigodaça
Mas este depressa é ajudado por um comparsa
A menina de Villepin murmura: - Vai haver desgraça!
E grita para o capitão francês: - Acabe com esta farsa!
- Quoi? - pergunta Villepin quase enfeitiçado: - Ah ça! 
E grita para os soldados com a sua voz que trespassa
Agradecida, a moça loira serve-lhe vinho numa taça.
 
Os exemplos estão dados! Agora cabe a cada um de vós dar uso, ou não, a estes e outros exercícios. Força nas canetas e muita inspiração!

MANU DIXIT

6 comentários:

  1. Olá, Emanuel!
    Muito útil para quem, como eu, escreve de uma forma um pouco anárquica. Devias pensar em lecionar um curso de escrita criativa (nem que fosse online). Aqui fica a sugestão...
    Beijinhos,
    Marta.

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    1. Marta! Agradeço a sugestão mas a verdade é que tenho mais para aprender do que para ensinar.
      Obrigado por mais uma visita participativa.
      Beijo.

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  2. Muito boa tarde!

    O senhor Lomelino há-de um dia, quando tiver tempo e paciência, averiguar, investigar, pesquisar, sondar, descobrir em que escola de "escrita criativa", com que meios e que exercícios terão feito para conseguir escrever tão bem, os grandes escritores que o mundo nos tem dado a ler e a conhecer há uns séculos a esta parte. Mesmo os actuais, os contemporâneos. Refiro-me aos bons, aos melhores escritores e poetas.

    Já agora, antes de começar a fazer os seus exercícios, informo-o de que a palavra - caçula - se escreve com ç e não com dois ss.

    Uma boa tarde muito ventosa mas sem chuva.
    Com os melhores cumprimentos

    BRSE

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    1. Não sei se é do tempo instável ou do meu baixo grau académico mas hoje não entendi qual é a parte deste texto de 4ª divisão que tanto o incomodou! Enfim, pode ser que amanhã, relendo tudo, possa chegar a alguma conclusão.

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  3. Magnífico! O que me foi dado a aprender, estou num dia com sorte. Muito grata Manu por esta dádiva. Eu que estou numa idade avançada nunca tive tal privilégio em tomar contaco com estes ensinamentos.
    Fiquei tão contente, por ter conhecido um Poeta tão humilde! Grata e desejo-lhe muita sorte e saúde. Maria Beatriz.

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    1. Maria Beatriz! Obrigado pelas visitas e pelas suas palavras. bem haja.

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