terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

FALA AÍ BRASIL... FLÁVIO MORGADO


 
 
Inicia-se hoje mais uma rúbrica que pretende dar-nos a conhecer um pouco daquilo que se faz no Brasil a nível literário.
O meu agradecimento ao poeta FLÁVIO MORGADO pelo seu contributo no enriquecimento deste blogue
 
 
Diria o poeta Mário Quintana, que “quem faz um poema abre uma janela”. Pois sim, Bruno Cattoni, um dos grandes poetas destes tempos, não só pertence a essa linhagem, como sabe a poesia como uma das mais potentes formas de se chegar ao outro. Talvez a única justa: a única que dizendo o poeta, também deixa emergir a alteridade do leitor. Cattoni sabe salvar afogados.

Poeta, ativista e jornalista, Cattoni nasceu no Rio de Janeiro, e é autor de mais de seis livros de poesia. Dono de “um verso largo, de ritmo quase bíblico, de alta densidade emotiva e inquietação social”, como diria seu contemporâneo, o poeta Salgado Maranhão, Cattoni nos dá a oportunidade de conhecer aqui um pouco de sua poética.

Com muito prazer, eu vos apresento, Bruno Cattoni.

 

1 - Cattoni, por quê a poesia como forma de expressão?


A poesia me alcançou antes que eu pudesse expressar, em outro gênero, a linguagem transcendente. É o veículo que chegou onde eu estava esperando condução. Veio da sensibilidade da meninice, da relação subjetiva com os animais, as plantas, as pedras e as paisagens. Passageiro das noções sem palavras, quando desembarquei no mundo do estudo e do trabalho, adquiri vocábulos e imagens para contar a aventura da minha percepção dramática de um planeta belo, onde moram as famílias, regaço do amor humano; e os cachorros, gatos, cavalos, vacas, coelhos, pássaros, peixes e répteis, fiéis depositários do meu amor à vida. Mas não sou um poeta rural ou telúrico. Foi no ambiente urbano que senti a necessidade destas lembranças, enquanto levava a minha poesia para formatar-se na festa das ruas, nos encontros numerosos e na socialidade exaltada. Descobri, assim, que a poesia é o meu veículo e que conduz ao sublime, movido à energia vivencial, contida em qualquer tempo e em qualquer espaço.


2 – Sua poesia é muito marcada pelo ativismo político. Num primeiro momento você foi militante do Partido Comunista, e hoje tem um importante trabalho poético em relação à defesa dos Direitos Humanos. Como é a relação, nesse caso, entre poesia e alteridade? É possível alcançar o outro?


Minha consciência não é passiva. Não me encerrei, solitário, no labirinto das contradições instaladas pela antropofagia capitalista, e quis libertar-me da impotência diante de relações absurdas de dominação e sujeição do homem no âmbito de um sistema político-filosófico fratricida.

A manutenção do lucro privado como motor da economia acarreta rivalidades entre as pessoas e entre os países. Rivalidades que conduzem ao desperdício e à competição estéril. As tensões entre as nações mais desenvolvidas e as que estão em desenvolvimento geram conflitos que não amenizaram, décadas depois do colonialismo. E esta cartilha macroeconômica é ensinada, sub-repticiamente, na publicidade, nas escolas e nos ambientes de trabalho todos os dias, o que fomenta, no tecido social, a disputa e o ódio entre os cidadãos.

No contexto de emancipação do homem, reside em cada um a mudança da sociedade capitalista. Mora em nós o gesto primordial de transformação da realidade exclusivista e competitiva, a partir da solidariedade humana. Por isso não entreguei minha ação a uma organização acima de meu livre-arbítrio, mas juntei minhas forças com as de irmãos em pensamento. Não faço poesia, nem trabalho em jornalismo ou no ativismo de direitos humanos, para derrubar o capitalismo, nem para implementar o que considero desejável, o socialismo - um ideário que também sofreu distorções mas que prega a distribuição da riqueza, não a sua concentração.

Escrevo atuando e atuo escrevendo para conscientizar sobre a utopia de um outro mundo possível, quem sabe melhor para todas as correntes de pensamento, que um dia se complementarão para preservar o ser humano e seus valores espirituais. A história da luta dos indivíduos é sangrenta, sim, em muitos momentos, mas é também reparadora e redentora no caminho do respeito e do amor ao próximo. Não há um roteiro que se deva transmitir para a realização deste destino comum a todos. Neste caso, não movo meus anseios a bordo da poesia, mas tomo outro bom transporte - a dor - que está circulando por todos os cantos onde estamos momentaneamente esquecidos por obra e desgraça do egoísmo e da vaidade, dois flagelos da natureza humana muito bem instrumentalizados pelos capitalistas.

Tenho muito a dizer, poeticamente, para me colocar ao alcance e no alcance do outro. Agora, recorro a Emmanuel Lévinas, o filósofo da alteridade. Vale a pena prestarmos mais atenção nas mulheres para entrever nelas o feminino, enquanto a alteridade é a sua natureza. E talvez a crise ontológica do ser, que provoca a celebração do idêntico e o desprezo pela diferença, chegue ao fim quando se optar por ser femininamente, "outramente", para além da essência e de todo conhecimento totalizante e totalitário.


3 – Até onde a poesia dá conta? Uma outra atividade que exerce é a de fundador de uma importante Organização Não Governamental, o Grupo Pela Vidda. Como age essa organização? Entende a poesia como um complemento a esse ativismo?

A poesia não dá conta de muita coisa, no sentido de ser insuficiente para todas, ou mesmo para algumas das lutas que devemos enfrentar. Houve gloriosas exceções. “España en el corazón", de Neruda, fez uma revolução nas trincheiras de combate ao franquismo. Exemplares do livro eram jogados dos aviões para levantar o moral dos combatentes da liberdade. E surtiu efeito. Também fizeram bom serviço os poemas de Maiakovski, Brecht, Lorca. Dos brasileiros Castro Alves, Thiago de Mello e Moacyr Félix. Dos cubanos Nicolás Guillén e José Martí. Do poeta palestino Mahmoud Darwish. Tantos outros, em várias épocas e pátrias. 

A poesia dá conta, certamente, no sentido de noticiar os suplícios dos heróis, a resistência de um povo, a impostura e a ignomínia dos obscurantistas. Sim, isto ela faz. Por isso, para mim, foi e é mais importante ser poeta do que escrever poemas. Para ajudar na integração, na dignidade e na valorização dos doentes de aids. Para denunciar o trabalho escravo com meus companheiros do Movimento Humanos Direitos. Para compor as ações de mobilização do Fórum Social Mundial, que reúne ativistas que trabalham pela paz e pela liberdade. Também o jornalismo considero um ativismo, para apontar os abusos de todos os tipos e manter vigilância pela democracia e pela liberdade de expressão. Sempre há um poeta onde é preciso. Sempre versos serão lembrados quando a luta recrudesce e a vida corre perigo. Enxergar além de seu tempo e além das aparências faz do poeta um bom auxiliar, aqui na Terra, do trabalho incansável dos anjos.


4 – Você é um poeta que passou pelo comunismo em um período ditatorial (1964 – 1985), passou pela poesia performática (valorizando a oralidade), chegou a uma poesia que busca dar voz aos que não a tem, e ao mesmo tempo, é elogiado por poetas renomados como Thiago de Mello e Ferreira Gullar por seu rigor no trabalho com a palavra. A palavra se transformou na sua poesia ao longo dessa trajetória? Qual a importância da palavra na sua poesia hoje?


De início quero dizer que meus poemas todos tiveram uma motivação política, mesmo quando falavam do amor por uma mulher. Isto porque considero o amor um ato político de transformação da realidade. Um poema de amor atinge em cheio um coração que precisa ser salvo do esquecimento e do desencanto. Salvar um coração é salvar uma vida, e salvar uma vida é um ato político enquanto alistamento, convocação, chamado. Também proclamo que o amor é um ato ético que disciplina e organiza não só a realidade, mas também a fantasia, para que se possa desejar com mais responsabilidade. O desejo, o delírio, o sonho, contidos no poema, eram impactantes nos versos da juventude, porém longínquos e inofensivos. Hoje eu vejo no meu verso todos os sonhos encarnados, mesmo os impossíveis. O rigor com a palavra é causa e efeito desta incorporação. O poeta aperfeiçoou a mágica do seu ofício e instila o desejo com mais virulência e verossimilhança.

Aqui, para explicar melhor, recorro a Octávio Paz, o poeta mexicano. O homem transforma a matéria, qualquer que seja sua atividade. A transmutação consiste em fazer os materiais abandonarem o mundo cego da natureza para ingressar no das obras, no mundo das significações. É desta ordem o destino da palavra na mão dos poetas. Mas para ter capacidade de transmutar as palavras é preciso medir a quantidade de desejo que há no bruxo, não só o talento para a mágica.

Por intermédio do poema, caldeirão e cadinho de toda esta alquimia política, ética e estética, o contato da realidade com a fantasia produziu uma reação química em que, no final, realidade e fantasia deixam de existir, para o surgimento de uma nova dimensão dialética da palavra.

Quanto à poesia falada, sendo mais presencial, menos trabalhada, guarda o frescor da verdade, a pureza do inconsciente. Não pode ser falseada. Esta é a vantagem e eu parei de publicar livros, em certa época da minha vida, só para não conspurcar este frescor e essa pureza. Mas com a maturidade, tive necessidade de deixar gravações na pedra e filhos no ventre, e não só mensagens soltas no vento ou bandeiras de seda desfraldadas. Interessante que, aos 55 , vejo meus poemas de juventude como os meus melhores em termos de resolução conceitual. Hoje resolvo formalmente com mais acerto e o acerto tornou-se até mais espontâneo. Antes não tinha tanta comunicação com os deuses. Hoje converso com os espíritos com mais naturalidade.


5 – Passando por essa gama de experiências, deve restar ao poeta um acúmulo de possibilidades e entendimentos perante algumas circunstâncias. E de alguma forma, hoje aos 55 anos, sua poesia já começa a deixar um legado, passa a ser uma referência. Como analisa o panorama atual da poesia feita no Brasil? O que diria a um poeta que inicia carreira?


A referência é o apelo social. Mesmo quando estou falando da angústia da existência ou da conquista amorosa, eu deixo traços de um projeto de sociedade humana solidária. Este é o legado possível. Sensibilizar as novas gerações para que utilizem a poesia para o bem do próximo, e não para chamar a atenção para si. A poesia refloresta o idioma e contribui para elevar a autoestima de uma nação, fortalecendo uma cultura. Lavrar versos só para refletir no vazio, exaltar o ego e desabafar as contrariedades resulta num gesto monástico ultrapassado e em desacordo com as demandas da luta pela construção de uma humanidade livre e desejante.  Como disse o poeta Mário Faustino, se a poesia for olhada como uma coisa de maus palhaços ou ruins carpideiras, a sociedade estará em perigo. A sociedade em que poetas não cumprem o seu dever. A poesia não é um passatempo, mas se tiver de ser, é bem mais útil e construtiva, como brinquedo mesmo, do que os videogames da modernidade digital.

 

Uma mostra de dois poemas do autor:

 

Unhas sujas

Tempo esgarça, tempo não passou
Que ele é farsa, transposta a massa
E o peso dos anos, depois da evolução.
O vento da praça tem poeira
Já não encontro palavra na nevasca
Vislumbro um deus que dança sem tempo
Nenhuma mudança me basta.
Não há o que mudar, para onde
Quando o tempo é novo e a ré me embaça
Pratos cravados na areia
Comeremos o esquecimento.
Ventre digere o que caçávamos
Que vivente abatemos?
Como posso lembrar de mim com fome
Se tempo algum se insere no que fui
Nuvem, bruma, uma espuma na fumaça
Mãos levitam numa procura escassa
Têm as unhas sujas de cavar o tempo
O que ficou foi como jaça
Rachaduras na memória que se espaça
Tempo esvanece, inda que tempo nasça.
 
[“Osso (na cabeceira da avalanche)”, 7Letras, 2005]

 

Quinta Parte

O amor não é se ver livre de todos os laços!
Quero usar a parábola de Edith para mostrar
Que amor não é se livrar do que está ao lado.
É compartilhar a combustão das lidas em nós,
Não sou eu que faço, o fazer me faz e refaz.
 
Se eu estou doente, a Humanidade adoece.
Ao me curar, salvo um órgão do corpo geral.
O lúcido lírio não quer um prêmio de honra,
Sua honra é violar o lixo, e de lá demonstrar:
 
Ninguém tem de sofrer mais do que sofre.
 
Então, meu sonho perto está de todo sonho
Menos pelo conteúdo que pela força do ato.
Sonho com meus desejos, outro com os dele,
Mas sonhar é uma coragem, tal como amar.
Não sonhar, covardia inconcebível, a saber.
 
Se uns não sonharem, outros vão sofrer,
Se uns sofrerem, só alguns vão sonhar.
Sofrer pelos nossos sonhos é dividi-los,
Logo não sofreremos, por desnecessário
E sonharemos sempre, por imperativo.
 
Sonhar não é bom nem ruim, é o mais real
Amar não é tão bom nem ruim, é ser livre
E ao sermos livres, soltamos as jornadas
Para a qual já partimos — tentar o sonho
É como entrar no lixo, livres para amar.
 
Amor funda a origem, e dela redunda
Ser mais, quando nada esperamos ser,
Falar quando mais nada temos a falar,
Abrindo-se à inutilidade consequente,
Efetuando o ato gratuito, e de repente.
 
Relativo, dúbio, volátil, incompleto,
Invicto, justo, perfeito e duradouro,
Ele serve ao seu jogo mais secreto,
A trama da possibilidade que sana
Quando o amor se perde. Ou não se ganha.
 
[“Silêncio de girassóis”, 7Letras, 2007]

 

*Flávio Morgado é poeta e autor do livro “Um caderno de capa verde” - 7Letras, 2012

 

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